O pós-modernismo de Boaventura Sousa Santos

O niilismo político do pós-modernismo extremado, consequência lógica da sua negação do processo histórico tensional e dialético e dos conflitos sociais objetivos, constitui uma armadilha para os pós-modernistas que se querem manter numa posição de luta contra o poder, melhor dito, na sua conceção, contra a rede de poderes. Os poderes disseminados, difusos, à Foucault, que teriam esvaziado o próprio poder político e jurídico, remetem o poder do Estado para uma entre múltiplas e variadas formas, das quais o poder do Estado nem seria a mais importante.

Desta armadilha se aperceberam alguns pós-modernistas com posições políticas de oposição ao capitalismo – pelo menos aos seus malefícios. Um exemplo marcante é Boaventura Sousa Santos, que desenvolveu, desde o seu livro “pela mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade” (Edições Afrontamento, Lisboa, 1999), uma abordagem crítica pós-modernista, a que chama pós-modernismo de oposição, assumindo uma posição de esquerda (embora não utilizando o termo e possivelmente nem perfilhando a dicotomia esquerda-direita) e reconhecendo, entre os centros da modernidade formadores das narrativas ideológicas e dos padrões epistémicos, a tríade de sociedades capitalistas, patriarcais e colonialistas. 

A sua fuga à armadilha de Foucault é bem expressa pela sua afirmação de que “Foucault leva longe demais o argumento da proliferação das formas de poder, e a tal ponto que ele se torna reversível e autodestrutivo. É que se o poder está em toda a parte, não está em parte nenhuma” (pág. 111). No entanto, se Boaventura Sousa santos se desmarca dos pós-modernistas mais extremados, no que respeita à política, é fiel ao essencial da filosofia pós-modernista, do seu relativismo cultural, da negação da racionalidade herdada do iluminismo. Atente-se, por exemplo, a que, para Boaventura Sousa Santos, “alternativas [JVC: à ciência] da metafísica, da astrologia, da religião, da arte, da poesia também são explicações possíveis da realidade” (“Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna”. Estudos Avançados, 1998, vol.2, nº.2, pág.68.)

A proposta pós-modernista de oposição merece discussão cuidadosa, não só pela qualidade intelectual do autor e a forma elaborada da sua apresentação, mas também porque Boaventura Sousa Santos tem considerável impacto em alguns setores de esquerda, com afloramentos no Bloco de Esquerda português – talvez pouco aparentes para o observador apressado e mais interessado nos factos políticos – e principalmente na América latina, em boa parte pelo sua participação influente no Fórum Social Mundial. 

Além disso, deve-se reconhecer validade à análise crítica de muitas manifestações e fenómenos na fase atual da modernidade. Mais adiante, dedicarei todo um capítulo a isso que, por analogia, posso chamar um novo “momento Polanyi”. 

Claro que há grande mudança na modernidade, principalmente a partir do último quartel do século XX, mas é uma fase avançada ou uma rotura, pós-modernidade? Não é jogo de palavras. A questão é se precisamos de novo paradigma ou se as teorias da modernidade, nomeadamente o marxismo, ainda têm validade para explicar e articular dialeticamente a perceção dessa mudança com a ação transformadora, ou se essas teorias estão refutadas e exigem um novo paradigma. A argumentação contrária, nomeadamente a do marxismo, não tem sido objetiva nem científica-racional, pelo que não cumpre os requisitos de refutação, no sentido usado na epistemologia das ciências.

Observando de forma muito próxima a acelerada mudança social e tecnológica, a minha concordância com Boaventura Sousa Santos para no fechar desse diagnóstico. É muito diferente a minha visão das causas, enquadramento e hierarquização dessas transformações e, muito mais, as perspetivas que delas decorrem para a ação política e o objetivo socialista.

O essencial da base de partida da sua formulação é a ideia de que “as sociedades capitalistas são formações ou configurações políticas constituídas por quatro modos básicos de produção de poder que se articulam de maneiras específicas.” Estes modos cruzam matricialmente  quatro espaços – o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço da cidadania e o espaço mundial, em que “cada espaço estrutural é um fenómeno complexo constituído por cinco componentes elementares: uma unidade de prática social, uma forma institucional privilegiada, um mecanismo de poder, uma forma de direito e um modo de racionalidade” (pág. 112). A construção é intelectualmente atraente, racional e sem a retórica do pós-modernismo filosófico, mas, a meu ver, é improdutiva em termos práticos, particularmente políticos, esvaziando-se nas propostas de ação e mesmo na formulação de objetivos.

Um aspeto da crítica da modernidade política que assume importância – também prática – em Boaventura Sousa Santos é o que se refere à sua discussão do marxismo – todo o capítulo 2, quase vinte páginas. “Sendo este a traço muito grosso o quadro geral da condição do presente, o que tem o marxismo a contribuir para a sua compreensão e superação? À primeira vista, muito pouco. O marxismo é uma das mais brilhantes reflexões da modernidade, um dos seus produtos culturais e políticos mais genuínos. Se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo será mais parte do problema que defrontamos do que da solução que pretendemos encontrar.” (pág. 112).

A leitura do capítulo surpreende. Apesar da erudição da história que faz do marxismo, repleta de citações, julgo que a sua visão do marxismo olha para um marxismo de caricatura do marxismo genuíno, muito mais próximo da cartilha escolástica com que sufocaram o marxismo do que de uma leitura exigente e refletida dos textos originais. Nesse capítulo de “Pela mão de Alice”, a crítica é feita invocando muitos autores marxistas modernos, a que também irei mais adiante, mas é muitas vezes difícil adivinhar-se o fundamento, de sua reflexão, da crítica de Boaventura Sousa Santos. É curioso, por exemplo, que a única referência direta a um texto de Marx seja a propósito de uma “boutade” bem conhecida e mal interpretada, de que o próprio Marx não seria marxista. 

Deixo de lado agora esta discussão, que retomarei quando se tratar da crítica ao “marxismo oficial” e da necessidade de remarxizar o marxismo. Faço notar apenas, neste momento, a ausência de discussão de um aspeto importante do pensamento de Marx, a questão da emancipação. É surpreendente, quando Boaventura Sousa Santos faz da emancipação o eixo principal da sua teoria pós-modernista de oposição, como veremos a seguir. É pena que não discuta, na sua crítica ao marxismo, por exemplo “A questão judaica”, trabalho em que Marx, apesar de se dirigir principalmente ao problema dos judeus e da sua condição religiosa, a coloca na perspetiva mais abrangente de toda a emancipação humana.

O pós-modernismo de oposição santiano baseia-se em que “a transição paradigmática reside numa dupla verificação: em primeiro lugar, que as promessas da modernidade, depois que esta  deixou reduzir as suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser cumpridas; e, em segundo lugar, que depois de dois séculos de promiscuidade entre modernidade e capitalismo tais promessas, muitas delas emancipatórias, não podem ser cumpridas em termos modernos nem segundo os mecanismos desenhados pela modernidade” (pág. 35).

Retendo a importância das promessas sociais da modernidade, rejeita todavia os métodos e a racionalidade, bem como os meios de intervenção deles decorrentes. Da mesma forma, culpa esse paradigma pela incapacidade de cumprimento dessas promessas. Essa incapacidade radicaria, essencialmente, na perda de validade dos elementos constitutivos da modernidade – a ciência, a racionalidade, a noção de progresso e a universalidade dos valores essenciais – em virtude da promiscuidade que se foi estabelecendo entre a modernidade e o capitalismo.

O que nunca fica claro é como é que o seu pós-modernismo de oposição vai ultrapassar esse bloqueio e abrir novas rotas ao caminho para a transformação. As propostas desse pós-modernismo não vão muito mais longe do que a mais convencional social-democracia, com roupagens de novas elaborações teóricas. Julgo mesmo poder-se dizer, de certa forma, que a proposta santiana, acabando por se centrar principalmente na democracia e nas emancipações – no plural, por lhe serem equiparáveis a emancipação política, a da opressão no trabalho, a das mulheres ou a das minorias étnicas – acaba por prolongar, ainda que aprofundando e dando-lhe novos matizes, a conceção liberal, terreno de onde não se afasta e com que não estabelece uma verdadeira rotura.

Sendo equivalentes os “modos de produção de poder” e os seus respetivos espaços, sem hierarquização, as emancipações só podem encontrar o maior denominador comum na democracia. É certo que Boaventura Sousa Santos ultrapassa o liberalismo tradicional, defendendo formas diversas de democracia participativa, mas os seus pressupostos teóricos não lhe permitem ir mais longe do que uma proposição de “democratização da democracia” – democracia representativa, entenda-se. E é ao domínio da democracia que se resume principalmente a crítica do capitalismo: “O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático”. E nem é certo que possa vir a sê-lo: “o aprofundamento da democracia representativa através de outras formas mais complexas de democracia pode conduzir à elastização e aumento do máximo de consciência possível, caso em que o capitalismo encontrará um modo de convivência com a nova configuração democrática, ou pode conduzir, perante a rigidificação desse máximo, a uma ruptura ou melhor, a uma sucessão histórica de micro-rupturas que apontem para uma ordem social pós-capitalista. Não é possível determinar qual será o resultado mais provável. A transformação social ocorre sem teleologia nem garantia. É esta indeterminação que faz o futuro ser futuro” (págs. 232-233). 

É fácil concordar com a necessidade de aprofundamento da democracia, com a efetivação de uma verdadeira democracia participativa e com a defesa da valorização da sociedade civil. No entanto, não vejo em que é que isto é uma rotura ou mudança radical dos ideais da modernidade, sendo propostas programáticas tradicionais de variadas correntes de esquerda, muito antes da novidade pós-modernista.

Além do mais, a democratização da democracia e a pretendida igualdade de condições na competição dos paradigmas – na linguagem pós-modernista – coloca o problema essencial das formas de luta para esse objetivo, já que, obviamente, ele não é pacificamente obtido sob o domínio do capital. As propostas do pós-modernismo de oposição são vagas e apontando, de forma muito genérica, para uma ação política com a tática de lutas diversificadas em diversas frentes de ataque aos poderes estabelecidos – repito: capitalista, patriarcal e colonial —, tanto lutas diretas como institucionais. Note-se bem que se postula a igualdade de estatuto e relevo de todas estas formas de dominação ou opressão, e, por consequência, das lutas que contra elas se fazem. Pelo contrário, os marxistas modernos, reconhecendo a importância das outras formas de dominação, enquadram-nas porém, no papel essencial da contradição capital-trabalho, não as autonomizando do quadro geral do capitalismo.

É patente que não há no pós-modernismo de oposição uma perspetiva de diferença radical entre o Estado burguês, capitalista, e um Estado controlado pelas forças do trabalho. Estamos, julgo, perante uma visão típica de Estado interclassista, mesmo que com maior fundamentação democrática, uma visão que, afinal, não se afasta muito do essencial da velha social-democracia.

E a incerteza “que faz o futuro ser futuro” – uma frase bonita, mas não mais – também justifica que não haja um esforço, mesmo que em termos gerais de objetivos centrais, para se delinear o que pode ser – ao menos o que se deseja que seja – a “ordem social pós-capitalista”.

Com isto, não se fica surpreendido com que o que Boaventura Sousa Santos escreve sobre o socialismo. Para ele, libertada a ideia do socialismo da caricatura do “socialismo real” (até aqui estamos de acordo), o socialismo volta a ser apenas “a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor, uma ideia que, enquanto utopia, é tão necessária quanto o próprio capitalismo”. E novamente a centragem absoluta nas emancipações diversificadas: “designar-se o conjunto das práticas emancipatórias por socialismo não tem outra legitimidade senão a que lhe advém da história” (pág. 238).

Fazendo recordar o velho revisionista Bernstein, para quem o movimento é mais importante do que o objetivo, o pós-modernismo de oposição não vai além da proposta continuista e afinal reformista de lutas soltas, não obrigatoriamente articuladas, atingindo cada um dos poderes difusos.

Certamente que não em nome do socialismo. “(…) o socialismo não será nunca mais do que uma qualidade ausente [JVC – o que não traz muito de novo ao “significante vazio” de Laclau]. Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória do que existe sem, contudo, nunca se transformar em algo existente. (…) a transformação emancipatória será cada vez mais investida de negatividade. Sabemos melhor o que não queremos do que o que queremos. Nestas condições, a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada. O socialismo é a democracia sem fim [JVC – itálico no original]” (pág. 238).

Dito tudo isto, não se pretende, todavia, que não seja necessário ter em conta muitas das críticas pós-modernistas a visões “positivistas”, simplistas, dos processos históricos e à ação política decorrente dessa visão; o mesmo também em relação à incapacidade de muitas correntes de esquerda para acompanharem a imensa mudança social ocorrida no último meio século. Adiante, neste livro, serão frequentes discussões desse tipo, mas sem que isto signifique simpatia global para com o pós-modernismo político radical.

Pode-se concordar na dúvida sobre a “racionalidade do real”, de Hegel, se tomada em absoluto. Pode-se concordar com que o socialismo real, soviético, pugnou pelo produtivismo predador, na sua ambição suprema de ultrapassar economicamente os Estados Unidos. Pode-se concordar com que o enorme aumento da riqueza não teve correspondência no desenvolvimento humano. Pode-se concordar com que o papel central do operariado na transformação para o socialismo se relativizou pela maior complexidade da estrutura de classes e das formas de conflito capital-trabalho. E muito mais. Também a maior consciência, traduzida em lutas, das opressões patriarcais, raciais e internacionais.

No entanto, na minha perspetiva, não é no quadro do capitalismo, mesmo com aprofundamento da sua democracia, que se resolvem estas contradições, nem se pode desenquadrar do capitalismo e da sua principal contradição – capital-trabalho – as outras opressões. contradições por um lado, opressões por outro, são inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, como outras anteriores que foram resolvidas em sínteses dialéticas, em negações de negação, que acabaram por – até agora! – permitir a sobrevivência do capitalismo, adaptado a novas circunstâncias; adaptação esta que, todavia, vai sempre gerando novas contradições.

A superação dialética final dessas crises significa o socialismo. Mas a natureza do socialismo não é fazer melhor o mesmo que faz o capitalismo. É fazer e viver outra coisa, como negação radical do capitalismo. 

Uma andorinha não faz a primavera

A eleição de Jeremy Corbyn para líder do Partido Trabalhista (Labour) foi vista por muitos como significando a morte do blairismo e o fim da deriva conservadora e neoliberal do trabalhista inglês. Como ocorre muitas vezes, “a notícia dessa morte foi manifestamente exagerada”. A andorinha Corbyn parecia anunciar uma primavera política, mas uma andorinha não faz a primavera.

O descalabro eleitoral do Labour não parece dever-se ao seu programa eleitoral de esquerda nem, como defendido pelos analistas personalistas, ao carácter ou imagem de Corbyn. Muitos inquéritos de opinião revelam uma confortável maioria de apoiantes das medidas socialistas propostas por Corbyn e pela ala esquerda do Labour: nacionalizações, criação de 100000 novas habitações sociais, reforço do SNS, criação de uma internet gratuita para todos, cuidados gratuitos para os idosos, abolição das propinas universitárias, etc. O erro tático deve ter sido o de pensar que a discussão sobre uma política progressista iria fazer desviar o centro d extensões do Brexit.

Em primeiro lugar, é óbvio que, nestes últimos dois anos, a vida política britânica tem estado quase absorvida pela saga do brexit. Dificilmente ele não seria o centro da campanha, tanto mais que isto interessava sobremaneira a Boris Johnson. Em segundo lugar, o brexit é, de facto, a pedra de toque de toda a política atual. O peso do factor brexit é bem demonstrado pela forte correlação local entre as perdas eleitorais do Labour e as circunscrições trabalhistas em que o brexit ganhou o referendo de 2016.

Em 2017, a questão do brexit ainda não tinha assumido as atuais dimensões e o Labour conseguiu uma boa posição, com os conservadores sem maioria absoluta, somente, como agora tentou, pela defesa de uma outra política em relação ao austeritarismo que ainda se vivia. O manifesto eleitoral, “For the many not the few”, reconheceu o estado de ira popular e apelou a ela para um movimento (o “Momentum”) em favor de uma transformação económica profunda

Porque não resultou agora? O descontentamento com a situação política e económica é o mesmo, senão mesmo muito maior. Simplesmente, foi agora transposto para o brexit e o Labor, Corbyn em particular, enredaram-se em ambiguidades e tensões internas que lhes retirou credibilidade. As alas “leave” e “maintain” equilibravam-se e coexistiam mesmo na direção do partido e até no círculo mais próximo de Corbyn. Sair ou não sair? União aduaneira ou não? Segundo referendo ou não? O Labour andou sempre a vacilar e Corbyn acabou por ser o retrato dessa indecisão.

Mais ainda, não conseguiram convencer o eleitorado, nem sequer insistiram muito nesse ponto, de que não há só um brexit. Há que distinguir um brexit negociado e um brexit duro. E, principalmente, há que distinguir um brexit de esquerda, a favor das classe populares, do mundo do trabalho, e um brexit de direita, segundo os interesses do grande capital. O Labor, nas múltiplas votações sobre os acordos May e depois Johnson, nunca me conheceu de que estava a deixar clara essa distinção. 

Há certamente diversas razões para a vontade popular maioritária de abandonar a UE, algumas delas estreitamente interligadas. Mas certamente uma das principais é a de ser uma forma de resposta e protesto de camadas trabalhadoras negligenciadas, em particular de operários de zonas industriais em depressão. Estes eleitores não se sentem representados pelos elementos de classe média (se é que há UMA classe média) e da intelectualidade que continuam a influenciar largamente o aparelho do Labor.

Não se pode negar que haja aspetos parcelares negativos no apoio ao brexit, nomeadamente um provável sentimento anti-imigração. É verdade que esse sentimento e o justo protesto contra o desemprego e a baixa de rendimentos de trabalho nas áreas industriais tradicionais, destruídas pelo “novo capitalismo” financeiro e dos serviços, andam frequentemente a par, o que é revelado pela captação pela Frente Popular francesa de votantes ex-comunistas ou pela vitória de Trump em largos setores do operariado americano.

É muito provável que grande parte dos eleitores populares favoráveis ao brexit vejam como inimigo mais facilmente identificável a UE, mais do que os próprios grandes negócios do país. Veem o poder da burocracia europeia, veem o consenso político-económico asfixiante, veem o domínio alemão ( dos que perderam duas guerras face ao Reino Unido).

Depois da implosão do mundo do “socialismo real”, a social-democracia teve uma janela de oportunidade que não soube aproveitar. Não soube é talvez desculpa imerecida, porque entretanto já tinha enveredado por um caminho quase sem retorno de social-liberalismo, de conciliação com o neoliberalismo.

Corbyn foi um exemplo único (porque falamos de social-democracia, excluindo assim o Syriza, o Podemos ou o BE como “novas esquerdas”) de tentativa de retorno aos fundamentos da social-democracia, ao “espírito de 45”, como o título do filme de Ken Loach.

Acabou por falhar por culpa da questão europeia, afinal a grande constrição a qualquer mudança desse tipo. “Europeismo de esquerda”, como pretendem os verdes europeus e o seu companheiro português, o Livre, é uma ilusão perigosa. Onde ainda valem os mecanismos democráticos para que as classes trabalhadoras possam exercer a vontade ou a pressão é a nível nacional. Que milagre permitiria a necessária unanimidade de 28 governos para uma revisão democrática e progressista dos tratados, quando a experiência até prova que, quando um referendo nacional se opõe ao consenso de Bruxelas, força-se nova e nova consulta até ao resultado desejado.

A meu ver, e de muita gente, o terreno privilegiado de luta, hoje, ainda é o nacional. O internacional está completamente armadilhado. E invocar internacionalismos d esquerda fora do quadro prático, ou cosmopolitismos alegadamente contrários ao soberanizo popular, a pretexto da construção fantasista de um “povo” europeu, é coisa de políticos lunáticos (para não os acusar de desonestidade).

O europeismo do social-liberalismo tem conduzido os partidos social-democratas ao desastre, mesmo que, no curto prazo, como no caso português, pareçam ter sucesso. Pode agora haver a tentação do Labour inverter a marcha, errando nas causas deste recente descalabro. Pode voltar ao blairismo e à conciliação de interesses. Pode ganhar a sua ala intelectual-urbana, na onda do pós-modernismo político que tem dado cartas desde a década de 70. O que não pode é continuar a alienar o seu eleitorado das classes trabalhadoras, das vítimas da desindustrializção causada pela financeirização e pela globalização.

E é uma lição para irmos tendo em conta em Portugal, mais tarde ou mais cedo. O socialismo da classe média ainda está por inventar.

NOTA – igualmente muito importantes nestas eleições foram os resultados do SNP na Escócia e do Sinn Fein na Irlanda do Norte. Caminho mais aberto às secessões?

Guias pouco confiáveis

Não é só cá que ouço de raspão guias turísticos a dizer inverdades, mas cá choca-me mais. Mais ainda, claro, quando toca às minhas ilhas, cuja especificidade cultural, histórica, gastronómica, merece bem ser conhecida pelos visitantes, incluindo, claro, os continentais.

Há dias, foi no Porto, numa volta turística para os participantes estrangeiros e alguns portugueses numa reunião médica internacional. O jovem guia era muito comunicativo, falando inglês fluentemente, embora com um erro significativo que estava sempre a repetir: bel(d)ges em vez de Belgians. Significativo porque, no seu sentido de humor peculiar, estava sempre a referir-se a anedotas ou a fazer piadas sobre belgas. Ao menos, podia ter tido o cuidado de saber se havia belgas no autocarro. E até havia!

Boa parte da sua charla foi sobre história e realidades de Portugal e aí é que meteu bem o pé na poça. “A princípio, vieram os romanos, que cá estiveram uns séculos, até os árabes invadirem a península”. Coitados de iberos, celtas, fenícios, cartagineses, gregos, antes dos romanos, e variados bárbaros depois dos romanos, com destaque para os visitados. Todos esquecidos. Mas, vá lá, falou dos lusitanos, como sendo assim chamado pelos romanos o povo que é hoje o português!

Fiquei também a saber que “os mouros não conseguiram passar o Douro e, por isto, o Porto é a cidade invicta”. E eu a pensar que a ocupação árabe só tinha falhado uma nesga nas Astúrias… Mas ele não gostava da ideia da ocupação de Portugal. Assim, passando pela estátua de D. João VI, disse bem convencido que “a fuga para o Brasil tinha impedido os franceses de ocuparem Portugal”. Por onde andaste então tanto tempo, Junot?

Voltando atrás, “D. Henrique era da Borgonha (e lá veio mais uma piada aos belgas…) e foi feito conde como prémio de muitos feitos de guerra contra os mouros no sul da península”. Fiquei também a saber que “a mais importante batalha da história portuguesa foi a de Ourique”.

Já chega, mas deixo a última pérola: sabem qual é a principal exportação portuguesa (se calhar do Porto)? É a maquinaria industrial! E essa, hem, diria Pessa.

Parece-me que está a ser necessário o selo de garantia na atividade de guia turístico. É mais importante do que a qualidade das sardinhas.

Novo lumpen

Marx discorreu bem sobre o lumpen-proletariado. Mas talvez cada classe tenha o seu lumpen. Por exemplo, Trump parece-me ser o bom exemplo do lumpen-capitalismo. Também noutras classes, como discutirei a seguir.

Desde há muito que observo a sociedade olhando para comportamentos exemplares. Talvez seja herança de uma das muitas máximas da sabedoria de uma das minhas avós: “vê-se um homem pela maneira como se porta em três mesas: do jantar, do jogo, dos negócios”. As lições da minha avó nunca me falharam, embora tenha frequentemente de as moderar em relação ao seu espírito de velha senhora.

Nos tempos de hoje, um dos meus campos de visão experimental é o da circulação automóvel. Não é novidade, há quem tenha estufado o automóvel como instrumento fálico, como instrumento de poder, até como meio inconscientemente suicida. Eu vejo-o muito como reflexo de uma cultura que adiante tentarei caracterizar.

A lista de comportamentos típicos é extensa. Estacionar num lugar em que outra pessoa visivelmente estava a preparar-se para o fazer, estacionar sem corrigir a posição e ocupar dois lugares, nunca cumprir as regras de prioridade, fazer gincana por impulso para a ultrapassagem seja como for, considerar as rotundas como terra de ninguém, etc., etc.

Mas foi um caso particular que me motivou esta nota. Regressava da margem sul, no acesso à ponte 25 de abril, e reparei em coisa estranha. Havia três faixas. A da esquerda era para a Via Verde e, logicamente, seria a mais despachada. A do meio era para as cabinas da portagem e a da direita para quem vinha de Almada. No entanto, a da Via Verde, com bicha desde há quilómetros atrás, era a mais lenta, com a do meio visivelmente mais rápida. Ao fim de algum tempo, não foi difícil perceber porquê. Como aliás se passa em outras auto-estradas, era gente, às dezenas, que ia até ao possível – mesmo traço contínuo – na via do meio e que depois se metia na via prioritária, demorando imenso o trânsito. Não tinham percebido, por distração, coitados, que havia centenas de outros automobilistas que já se tinham colocado ordenadamente naquela fila!

Este é um exemplo de padrão de comportamento global, egoista, antissocial. Talvez esquematicamente, tendo a classificar as coisas em termos psicológicos e sociológicos. Não posso dizer que seja regra, mas o que vejo da gente que assim se comporta indica-me que fazem parte de um grupo especial de nova classe média. Os “novos”, como os novos ricos, sempre tiveram características comuns. Novos, têm origens diferentes das que alcançaram, embora este alcance seja pequeno e pouco significativo em termos de nova cultura. São tão provincianos como os pais, mas, enquanto que estes, taxistas, camionistas, merceeiros, empregados de supermercado, eram genuinamente o que eram, os filhotes deslumbraram-se com o seu canudo, têm como elegância máxima a especiaria que juntam ao gin tónico.

Hoje, é inegável a importância da classe média, embora se tenha de discutir muito o que isto é. Ficará para o meu futuro “Utopia Hoje”. O que me parece é que esta gente, em relação à classe média, também é lumpen e merece toda a crítica pejorativa que Marx fez do seu congénero, o lumpen-proletariado,

Outra coisa que ainda mais me impressiona é que aqueles comportamentos são muitas vezes praticados na presença dos filhos. A maldade humana é genética!

Também a nossa cultura de complacência. Naquele exemplo, eram muitos os carros que facilitavam a entrada dos checos espertos. Que fazer contra este círculo vicioso? Afinal, todos parecem compreender, porque também o fazem, o esquema de dá-se um jeitinho, salve-se como se puder, untar as mãos, meter uma cunha.

Isto é cultura que passa por cima das reformas políticas. 40 anos depois do 25 de abril continua vivo na nossa sociedade e não parece estar na prioridade de nenhum partido. Mesmo muita gente de esquerda que leio ou que comenta os meus escritos privilegiam o imediatismo, a política social, o estado social de bem estar. Claro que têm razão em defender isto, mas não basta,

Mais decisiva é a mudança da mentalidade. O povo não é uma entidade mítica. É o produto de muitas condições culturais, económicas, sociais, geopolíticas. Antero continua atual, nas suas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. O português típico, descontados os riscos da generalização, continua a ser o Zé Povinho albardado pela grande porca.

A esquerda deve defender o SNS, as liberdades, a segurança social, a escola pública, a soberania nacional? Indiscutivelmente. Mas acima de tudo, entender que o futuro é de gente com mentes educadas, livres, racionais, capazes de resistir à desinformação, críticas. E com espírito cívico bem enraizado.

A prioridade é educação, educação, educação. Entendida como formação de homens com intelecto livre.

Homossexualidade, destino ou escolha?

Nos últimos dias, tem sido notícia um estudo que indica que não há um simples gene da homossexualidade e que ela é determinada tanto geneticamente como vivencialmente. A primeira conclusão é descabida, porque nunca se põe a hipótese simplista de poder haver um único gene da homossexualidade. A maioria das situações patológicas ou desviantes com base genética tem a ver com constelações de genes interactuantes e também de factores epigenéticos, isto é, transmitidos de geração a geração mas não como mutações nos genes propriamente ditos. Há muitos exemplos conhecidos: o sindroma metabólico, a diabetes, as psicoses.

No entanto, este estudo não exclui, antes indicia, causas genéticas mais complexas, não preditivas por qualquer simples gene e associadas a fatores vivenciais, sejam ambientais, sejam psicológicos, nas relações familiares ou outras. Isto vai de encontro ao sentido comum.

Não sendo fanático de Ortega y Gasset, perfilho uma sua máxima: “o homem é ele e as suas circunstâncias”. É uma fonte de variação, circunstancial, sobre outra fonte, a essencial. Em outras palavras, ambiente (em sentido lato) e genética.

Somos mais ou menos inteligentes, mais ou menos fortes fisicamente, mais ou menos emotivos, mais ou menos propensos a muitas doenças. Mais orientados para interesses intelectuais ou menos. São diferenças, num contínuo que se distribui pela clássica curva de Gauss, a curva em sino. O que não impede que haja a noção de anormalidade, que mais não seja a proporção de 95% dos indivíduos que ficam para um lado e outro da média. para além destes, 2,5% ficam à esquerda e outros tantos à direita. são “anormais”. A “normalidade” é  um conceito estatístico, mas com muitos efeitos práticos. Por isto podemos dizer que uma pessoa com IQ 150 é um génio e uma com IQ 80 é retardado e “anormal”. É claro que há outras noções de normalidade ou anormalidade a ter em conta: o que prejudica os outros, o que perturba as relações sociais e de trabalho, o que faz sofrer psicologicamente (hoje chamados de “distúrbios”), etc.

O problema é quando a normalidade ou anormalidade têm significados pejorativos. No caso da homossexualidade, ninguém sabe ao certo qual é a sua percentagem. Fala-se de 10%, o que ultrapassa os 5% de definição estatística da anormalidade ou melhor dito do desvio, mas que está longe de encaixar no consenso de normalidade. 10% não é estatistamente o mesmo que 90%, por mais que respeitáveis e sujeitos de direito que sejam a minoria..

No entanto, estou a falar de meros significados estatísticos, obviamente sem conotação social ou ética. O que não quer dizer que não seja ajustado o termo clássico da estatística, desvio. Da mesma forma, a bíblia da psiquiatria, o DSM, deixou de classificar muitas situações como doenças, mas mantêm-nas como “disorders”. Uma, por exemplo, é a transsexualidade.

No outro extremo da discussão, para mim sem qualquer rigor e só ideológica, está a valorização da homossexualidade como livre escolha. Toda a gente sabe que não é. Não se escolhe ser homossexual como se escolhe um partido ou uma profissão. É uma determinação biológica (incluindo a esfera psicológica) que ainda não compreendemos cientificamente mas indiscutivelmente não é uma escolha fria e consciente. Ou não houvesse todos os conhecidos traumas nessa assunção de identidade de orientação sexual. E, sendo uma simples variante biológica, minoritária, não há razão – para além do social – para se traduzir em orgulho gay ou em cultura gay.

Fora desta linha de raciocínio, outra questão em que tenho pensado sem chegar a alguma conclusão. A homossexualidade desafia a base darwinista da evolução. Atenta contra o interesse da espécie, porque limita a sua reprodução. Para que se tenha mantido, contra todos os fatores adversos, é necessário que tenha alguma vantagem seletiva. Qual?

P. S. Claro que este texto me vai trazer muitas acusações de homofobia. Aguento!