O niilismo político do pós-modernismo extremado, consequência lógica da sua negação do processo histórico tensional e dialético e dos conflitos sociais objetivos, constitui uma armadilha para os pós-modernistas que se querem manter numa posição de luta contra o poder, melhor dito, na sua conceção, contra a rede de poderes. Os poderes disseminados, difusos, à Foucault, que teriam esvaziado o próprio poder político e jurídico, remetem o poder do Estado para uma entre múltiplas e variadas formas, das quais o poder do Estado nem seria a mais importante.
Desta armadilha se aperceberam alguns pós-modernistas com posições políticas de oposição ao capitalismo – pelo menos aos seus malefícios. Um exemplo marcante é Boaventura Sousa Santos, que desenvolveu, desde o seu livro “pela mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade” (Edições Afrontamento, Lisboa, 1999), uma abordagem crítica pós-modernista, a que chama pós-modernismo de oposição, assumindo uma posição de esquerda (embora não utilizando o termo e possivelmente nem perfilhando a dicotomia esquerda-direita) e reconhecendo, entre os centros da modernidade formadores das narrativas ideológicas e dos padrões epistémicos, a tríade de sociedades capitalistas, patriarcais e colonialistas.
A sua fuga à armadilha de Foucault é bem expressa pela sua afirmação de que “Foucault leva longe demais o argumento da proliferação das formas de poder, e a tal ponto que ele se torna reversível e autodestrutivo. É que se o poder está em toda a parte, não está em parte nenhuma” (pág. 111). No entanto, se Boaventura Sousa santos se desmarca dos pós-modernistas mais extremados, no que respeita à política, é fiel ao essencial da filosofia pós-modernista, do seu relativismo cultural, da negação da racionalidade herdada do iluminismo. Atente-se, por exemplo, a que, para Boaventura Sousa Santos, “alternativas [JVC: à ciência] da metafísica, da astrologia, da religião, da arte, da poesia também são explicações possíveis da realidade” (“Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna”. Estudos Avançados, 1998, vol.2, nº.2, pág.68.)
A proposta pós-modernista de oposição merece discussão cuidadosa, não só pela qualidade intelectual do autor e a forma elaborada da sua apresentação, mas também porque Boaventura Sousa Santos tem considerável impacto em alguns setores de esquerda, com afloramentos no Bloco de Esquerda português – talvez pouco aparentes para o observador apressado e mais interessado nos factos políticos – e principalmente na América latina, em boa parte pelo sua participação influente no Fórum Social Mundial.
Além disso, deve-se reconhecer validade à análise crítica de muitas manifestações e fenómenos na fase atual da modernidade. Mais adiante, dedicarei todo um capítulo a isso que, por analogia, posso chamar um novo “momento Polanyi”.
Claro que há grande mudança na modernidade, principalmente a partir do último quartel do século XX, mas é uma fase avançada ou uma rotura, pós-modernidade? Não é jogo de palavras. A questão é se precisamos de novo paradigma ou se as teorias da modernidade, nomeadamente o marxismo, ainda têm validade para explicar e articular dialeticamente a perceção dessa mudança com a ação transformadora, ou se essas teorias estão refutadas e exigem um novo paradigma. A argumentação contrária, nomeadamente a do marxismo, não tem sido objetiva nem científica-racional, pelo que não cumpre os requisitos de refutação, no sentido usado na epistemologia das ciências.
Observando de forma muito próxima a acelerada mudança social e tecnológica, a minha concordância com Boaventura Sousa Santos para no fechar desse diagnóstico. É muito diferente a minha visão das causas, enquadramento e hierarquização dessas transformações e, muito mais, as perspetivas que delas decorrem para a ação política e o objetivo socialista.
O essencial da base de partida da sua formulação é a ideia de que “as sociedades capitalistas são formações ou configurações políticas constituídas por quatro modos básicos de produção de poder que se articulam de maneiras específicas.” Estes modos cruzam matricialmente quatro espaços – o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço da cidadania e o espaço mundial, em que “cada espaço estrutural é um fenómeno complexo constituído por cinco componentes elementares: uma unidade de prática social, uma forma institucional privilegiada, um mecanismo de poder, uma forma de direito e um modo de racionalidade” (pág. 112). A construção é intelectualmente atraente, racional e sem a retórica do pós-modernismo filosófico, mas, a meu ver, é improdutiva em termos práticos, particularmente políticos, esvaziando-se nas propostas de ação e mesmo na formulação de objetivos.
Um aspeto da crítica da modernidade política que assume importância – também prática – em Boaventura Sousa Santos é o que se refere à sua discussão do marxismo – todo o capítulo 2, quase vinte páginas. “Sendo este a traço muito grosso o quadro geral da condição do presente, o que tem o marxismo a contribuir para a sua compreensão e superação? À primeira vista, muito pouco. O marxismo é uma das mais brilhantes reflexões da modernidade, um dos seus produtos culturais e políticos mais genuínos. Se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo será mais parte do problema que defrontamos do que da solução que pretendemos encontrar.” (pág. 112).
A leitura do capítulo surpreende. Apesar da erudição da história que faz do marxismo, repleta de citações, julgo que a sua visão do marxismo olha para um marxismo de caricatura do marxismo genuíno, muito mais próximo da cartilha escolástica com que sufocaram o marxismo do que de uma leitura exigente e refletida dos textos originais. Nesse capítulo de “Pela mão de Alice”, a crítica é feita invocando muitos autores marxistas modernos, a que também irei mais adiante, mas é muitas vezes difícil adivinhar-se o fundamento, de sua reflexão, da crítica de Boaventura Sousa Santos. É curioso, por exemplo, que a única referência direta a um texto de Marx seja a propósito de uma “boutade” bem conhecida e mal interpretada, de que o próprio Marx não seria marxista.
Deixo de lado agora esta discussão, que retomarei quando se tratar da crítica ao “marxismo oficial” e da necessidade de remarxizar o marxismo. Faço notar apenas, neste momento, a ausência de discussão de um aspeto importante do pensamento de Marx, a questão da emancipação. É surpreendente, quando Boaventura Sousa Santos faz da emancipação o eixo principal da sua teoria pós-modernista de oposição, como veremos a seguir. É pena que não discuta, na sua crítica ao marxismo, por exemplo “A questão judaica”, trabalho em que Marx, apesar de se dirigir principalmente ao problema dos judeus e da sua condição religiosa, a coloca na perspetiva mais abrangente de toda a emancipação humana.
O pós-modernismo de oposição santiano baseia-se em que “a transição paradigmática reside numa dupla verificação: em primeiro lugar, que as promessas da modernidade, depois que esta deixou reduzir as suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser cumpridas; e, em segundo lugar, que depois de dois séculos de promiscuidade entre modernidade e capitalismo tais promessas, muitas delas emancipatórias, não podem ser cumpridas em termos modernos nem segundo os mecanismos desenhados pela modernidade” (pág. 35).
Retendo a importância das promessas sociais da modernidade, rejeita todavia os métodos e a racionalidade, bem como os meios de intervenção deles decorrentes. Da mesma forma, culpa esse paradigma pela incapacidade de cumprimento dessas promessas. Essa incapacidade radicaria, essencialmente, na perda de validade dos elementos constitutivos da modernidade – a ciência, a racionalidade, a noção de progresso e a universalidade dos valores essenciais – em virtude da promiscuidade que se foi estabelecendo entre a modernidade e o capitalismo.
O que nunca fica claro é como é que o seu pós-modernismo de oposição vai ultrapassar esse bloqueio e abrir novas rotas ao caminho para a transformação. As propostas desse pós-modernismo não vão muito mais longe do que a mais convencional social-democracia, com roupagens de novas elaborações teóricas. Julgo mesmo poder-se dizer, de certa forma, que a proposta santiana, acabando por se centrar principalmente na democracia e nas emancipações – no plural, por lhe serem equiparáveis a emancipação política, a da opressão no trabalho, a das mulheres ou a das minorias étnicas – acaba por prolongar, ainda que aprofundando e dando-lhe novos matizes, a conceção liberal, terreno de onde não se afasta e com que não estabelece uma verdadeira rotura.
Sendo equivalentes os “modos de produção de poder” e os seus respetivos espaços, sem hierarquização, as emancipações só podem encontrar o maior denominador comum na democracia. É certo que Boaventura Sousa Santos ultrapassa o liberalismo tradicional, defendendo formas diversas de democracia participativa, mas os seus pressupostos teóricos não lhe permitem ir mais longe do que uma proposição de “democratização da democracia” – democracia representativa, entenda-se. E é ao domínio da democracia que se resume principalmente a crítica do capitalismo: “O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático”. E nem é certo que possa vir a sê-lo: “o aprofundamento da democracia representativa através de outras formas mais complexas de democracia pode conduzir à elastização e aumento do máximo de consciência possível, caso em que o capitalismo encontrará um modo de convivência com a nova configuração democrática, ou pode conduzir, perante a rigidificação desse máximo, a uma ruptura ou melhor, a uma sucessão histórica de micro-rupturas que apontem para uma ordem social pós-capitalista. Não é possível determinar qual será o resultado mais provável. A transformação social ocorre sem teleologia nem garantia. É esta indeterminação que faz o futuro ser futuro” (págs. 232-233).
É fácil concordar com a necessidade de aprofundamento da democracia, com a efetivação de uma verdadeira democracia participativa e com a defesa da valorização da sociedade civil. No entanto, não vejo em que é que isto é uma rotura ou mudança radical dos ideais da modernidade, sendo propostas programáticas tradicionais de variadas correntes de esquerda, muito antes da novidade pós-modernista.
Além do mais, a democratização da democracia e a pretendida igualdade de condições na competição dos paradigmas – na linguagem pós-modernista – coloca o problema essencial das formas de luta para esse objetivo, já que, obviamente, ele não é pacificamente obtido sob o domínio do capital. As propostas do pós-modernismo de oposição são vagas e apontando, de forma muito genérica, para uma ação política com a tática de lutas diversificadas em diversas frentes de ataque aos poderes estabelecidos – repito: capitalista, patriarcal e colonial —, tanto lutas diretas como institucionais. Note-se bem que se postula a igualdade de estatuto e relevo de todas estas formas de dominação ou opressão, e, por consequência, das lutas que contra elas se fazem. Pelo contrário, os marxistas modernos, reconhecendo a importância das outras formas de dominação, enquadram-nas porém, no papel essencial da contradição capital-trabalho, não as autonomizando do quadro geral do capitalismo.
É patente que não há no pós-modernismo de oposição uma perspetiva de diferença radical entre o Estado burguês, capitalista, e um Estado controlado pelas forças do trabalho. Estamos, julgo, perante uma visão típica de Estado interclassista, mesmo que com maior fundamentação democrática, uma visão que, afinal, não se afasta muito do essencial da velha social-democracia.
E a incerteza “que faz o futuro ser futuro” – uma frase bonita, mas não mais – também justifica que não haja um esforço, mesmo que em termos gerais de objetivos centrais, para se delinear o que pode ser – ao menos o que se deseja que seja – a “ordem social pós-capitalista”.
Com isto, não se fica surpreendido com que o que Boaventura Sousa Santos escreve sobre o socialismo. Para ele, libertada a ideia do socialismo da caricatura do “socialismo real” (até aqui estamos de acordo), o socialismo volta a ser apenas “a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor, uma ideia que, enquanto utopia, é tão necessária quanto o próprio capitalismo”. E novamente a centragem absoluta nas emancipações diversificadas: “designar-se o conjunto das práticas emancipatórias por socialismo não tem outra legitimidade senão a que lhe advém da história” (pág. 238).
Fazendo recordar o velho revisionista Bernstein, para quem o movimento é mais importante do que o objetivo, o pós-modernismo de oposição não vai além da proposta continuista e afinal reformista de lutas soltas, não obrigatoriamente articuladas, atingindo cada um dos poderes difusos.
Certamente que não em nome do socialismo. “(…) o socialismo não será nunca mais do que uma qualidade ausente [JVC – o que não traz muito de novo ao “significante vazio” de Laclau]. Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória do que existe sem, contudo, nunca se transformar em algo existente. (…) a transformação emancipatória será cada vez mais investida de negatividade. Sabemos melhor o que não queremos do que o que queremos. Nestas condições, a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada. O socialismo é a democracia sem fim [JVC – itálico no original]” (pág. 238).
Dito tudo isto, não se pretende, todavia, que não seja necessário ter em conta muitas das críticas pós-modernistas a visões “positivistas”, simplistas, dos processos históricos e à ação política decorrente dessa visão; o mesmo também em relação à incapacidade de muitas correntes de esquerda para acompanharem a imensa mudança social ocorrida no último meio século. Adiante, neste livro, serão frequentes discussões desse tipo, mas sem que isto signifique simpatia global para com o pós-modernismo político radical.
Pode-se concordar na dúvida sobre a “racionalidade do real”, de Hegel, se tomada em absoluto. Pode-se concordar com que o socialismo real, soviético, pugnou pelo produtivismo predador, na sua ambição suprema de ultrapassar economicamente os Estados Unidos. Pode-se concordar com que o enorme aumento da riqueza não teve correspondência no desenvolvimento humano. Pode-se concordar com que o papel central do operariado na transformação para o socialismo se relativizou pela maior complexidade da estrutura de classes e das formas de conflito capital-trabalho. E muito mais. Também a maior consciência, traduzida em lutas, das opressões patriarcais, raciais e internacionais.
No entanto, na minha perspetiva, não é no quadro do capitalismo, mesmo com aprofundamento da sua democracia, que se resolvem estas contradições, nem se pode desenquadrar do capitalismo e da sua principal contradição – capital-trabalho – as outras opressões. contradições por um lado, opressões por outro, são inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, como outras anteriores que foram resolvidas em sínteses dialéticas, em negações de negação, que acabaram por – até agora! – permitir a sobrevivência do capitalismo, adaptado a novas circunstâncias; adaptação esta que, todavia, vai sempre gerando novas contradições.
A superação dialética final dessas crises significa o socialismo. Mas a natureza do socialismo não é fazer melhor o mesmo que faz o capitalismo. É fazer e viver outra coisa, como negação radical do capitalismo.