O meu bife à café

Minimizando as compras no talho, uma das carnes mais fáceis de obter por compra online e de se conservarem sem sobrelotar o congelador são os bifes da vazia, embalados a vácuo, de carne maturada ou não. Para mim, ótimo, porque me perco por bifes e me gabo de fazer bem e de cor os mais consagrados na minha cozinha: merecidamente simples (de lombo) só barrado com um pouco de boa mostarda, à café, à Marrare, “au poivre”, à micaelense (o favorito da minha mulher), à Jansen. Também um indizível bife de jovem, que já não faço, com um molho eclético de uma dúzia de temperos, uma vergonha para a minha atual qualidade de cozinheiro criativo.

O último, que suscita esta nota, foi à café. Não podia faltar uma primeira nota sobre uma das minhas embirrações: senhores, o bife “à” café não é bife “com” café! A caldeirada à fragateiro também não leva pedaços do casco do barco nem o bacalhau à lagareiro leva borras do lagar.

No meu tempo de estudante, ir ao restaurante era um luxo e dávamos muito valor a essa excecionalidade que era ir comer um bom bife. Quase havia campeonato: qual era o melhor bife? Nicola, Poertugália, Império, Vává, Trindade, Relento, rivalizávamos.

Cada café ou cervejaria tinha a sua receita, mas a base é a que Maria de Lurdes Modesto escreveu na “Cozinha Tradicional Portuguesa”.

1 bife alto cortado do pojadouro (200 g), 2 colheres de sopa de manteiga ou margarina, 3 colheres de sopa de leite, 1 colher de chá de fécula de batata, sal, pimenta [MLM omite o tipo de pimenta], 1 colher de café de mostarda, limão.

Aquece-se bem metade da porção da manteiga ou da margarina. Introduz-se o bife e deixa-se alourar rapidamente dos dois lados, sem o picar ao voltar. Reduz-se o calor e tempera-se o bife com sal grosso e pimenta moída na altura. Adiciona-se a restante manteiga ou margarina e o leite frio, onde se desfez a fécula, e deixa-se cozer mais ou menos, conforme o gosto. Durante este tempo, agita-se a frigideira constantemente para que o molho não engrosse. Junta-se um fio de sumo de limão e a mostarda.

O meu bife à café, já com muitos anos de criação, obedece a esta linah geral, mas com modificações relevantes. Começa pela carne. para mim, pojadouro só para bifes relativamente finos, como uso no caso de bifes de cebolada. Normalmente não desperdiço lombo para um bife à café, mas não dispenso a vazia. uso bifes de 2,5-3 cm de espessura mas estes que agora compro já, cortados vêm com 2 cm. Frito rapidamente em pouca gordura  e refino o molho.

1 bife da vazia, manteiga (se tiver preocupação dietética, use margarina cremosa Becel), 2 dentes de alho, 2 dl de vinho branco, 1 c. sopa de geleia de carne (dispensável), 1 dl de leite, 1 c. de chá de maizena, 1 folha de louro, sal, pimenta preta moída a fresco, 1 cravinho, tomilho, sumo de limão, 1 c. de chá de mostarda de Dijon.

Deixar os bifes no frigorífico 2-3 dias. Retirar e deixar chegar à temperatura ambiente. Começar por preparar o molho. Ferver no vinho branco, durante alguns minutos, o alho esmagado, o tomilho e as especiarias. Reduzir a metade. Coar e reservar. Juntar ao leite, acrescentar a geleia, e diluir a maizena.

Aquecer uma frigideira, sem gordura, a lume máximo, até bem quente. Esfregar o bife com manteiga, de ambos os lados, e colocar na frigideira. Fritar de um lado e outro, 1 minutos e 15 segundos de cada lado (para ponto médio-mal). Ao virar o bife, temperar com sal grosso ou flor de sal. Retirar o bife para um prato e deixar arrefecer um pouco a frigideira. Juntar o molho, levantando os sucos do bife e mexer sempre até à consistência pretendida. Ajustar com água, se necessário. juntar o suco que entretanto escorreu do bife, apagar o lume e incorporar 1 c. de sopa de manteiga, a mostarda e o sumo de limão, mexendo muito bem para homogeneizar. Juntar logo o bife, para reaquecer, sem ferver mais o molho.

Servir com batatas fritas em dois tempos. Primeiro 5 minutos a 130º, escorrer e deixar arrefecer durante mais 5 minutos, depois reintroduzir na fritadeira já a 190º, até ficarem bem douradas.

Cozinha de avô

Passei duas semanas em Londres a prestar assistência aos jovens pais da minha última “neta” (verdadeiramente neta da minha mulher, mas para mim é o mesmo). Aquilo em que mais pude ajudar foi em aliviá-los das tarefas de cozinha, tal como já tinha feito depois do nascimento do malandro do António. Programei todas mas refeições, a partir da minha coleção, mas deixei uma pequena margem para o improviso. Hoje conto o que foi o robalo ao vapor com legumes e molho Cecília.

Em Portugal, teria muito mais escolhas de peixe, mas lá, na carrinha de peixe de Northcote Road, só filetes de bacalhau fresco, de solha e aparentados, salmão e, como peixes inteiros, truta, robalo e dourada.

Cozi o robalo, simplesmente temperado com sal, ao vapor, na Bimby (30 minutos na varoma). Entretanto preparei o molho homenageante, segundo esta receita improvisada. Refogar moderadamente em manteiga chalotas e bolbo de funcho picados. Molhar com um cálice de Porto ou moscatel e deixar evaporar quase completamente. Juntar uma colher de sopa de farinha e voltear bem, a fazer roux louro. Aveludar com caldo de marisco, até à consistência de molho cremoso e temperar com pimenta e pimenta da Jamaica. Moer e juntar estragão. Fervilhar, 3 minutos.

Uma receita minha, de reconstrução de sabores açorianos

Carpaccio de polvo com geleia agridoce de cebola e malagueta

Polvo: 1,5 kg de polvo, uma cebola inteira, 4 dentes de alho esmagados, sal, 1 folha de louro, 1 raminho de salsa.
Molho: 2,5 dl de vinho tinto, água de cozedura do polvo quanto baste, 1 c. sopa de açúcar, 1,5 c. sopa de mistura de sumo de limão e sumo de laranja, 8 grãos de pimenta preta, 6 pimentas da Jamaica, 2 c. sopa de compota de malagueta.
Balachas de broa. Uma clara,20 g de broa esfarelada, 1 c. sopa de óleo, 10 g de farinha.

Polvo. Cozer os polvos inteiros, com a cebola, o alho e as ervas, cerca de 30 min. Reservar o caldo e remover a cebola. Cortar as partes grossas dos tentáculos e semicongelar. Cortar em lâminas finas, na diagonal. Guardar algumas pontas de tentáculos para decorar.

Bolachas. Preaquecer o forno a 220º. Bater ligeiramente uma clara e misturar bem com a broa bem esfarelada, 1 c. sopa de óleo e a farinha. Espalhar em tapete siliconado e aquecer até douradas. Deixar arrefecer.

Molho. Remover a cebola do caldo do polvo, aproveitar metade e juntar o vinho tinto e caldo, com os temperos. Reduzir, até a cebola glaciar bem, cerca de 30 minutos. Coar e juntar a compota de malagueta. Levar a ponto semi-glacê.

Salada de agrião ou brotos. Pingos ou spray de vinagrete não muito avinagrada, com azeite, uma pitada de açafroa (tempero açoriano, à ,venda nas lojas dos Açores).

A compota de malagueta pode servir para outros fins: com luvas, abrir ao comprido 500 g de pimentas malagueta, grandes, esvaziar e lavar. Escaldar em água a ferver, a cobrir, durante 10 minutos. Escorrer, guardando a água e moer as malaguetas. Levar ao lume 1 copo da água de ferver, com 250 g de açúcar e 1/2 c. sopa de sumo de limão, até fazer calda. Juntar a polpa da malagueta e levar a ponto de compota, mexendo sempre. Juntar 1 c. Sopa de manteiga, sal e ferver mais 5 minutos, mexendo sempre. Moer novamente, se necessário, deixar arrefecer e guardar em frascos fervidos.

Uma sopa terceirense

Esta sopa-refeição, de enfartar, era tradicional da Terceira, onde se chamava sopa de cavador (ou pelo menos assim se chamava na minha família). Sempre se fez na minha casa de infância, onde, por origem terceirense da minha família materna, a cozinha terceirense tinha grande presença.

250 g de feijão rajado ou, na falta, de feijão catarino (ou vermelho), 300 g de abóbora, 2 batatas doces, 4 batatas grandes, uma linguiça, 125 g de toucinho, um chispe, uma cebola grande, 3 dentes de alho, uma folha de louro, 6 grãos de pimenta da Jamaica, sal, 6-8 grãos de pimenta preta e uma c. café de canela. A linguiça açoriana não é a de cá. É mais próxima de um bom chouriço de carnes, mas mais temperada e picante. (A meu gosto, junto também 1/2 c. chá de cominhos).

Demolhar o feijão e semi-cozê-lo. Fazer a sopa com o feijão, as carnes e os legumes cortados em pedaços pequenos e os temperos, com água mais o caldo do feijão, só a cobrir tudo. Deve ficar um pouco apurada. A canela só se junta quando a sopa estiver pronta. Sendo um tempero pouco vulgar em sopas, aconselho que se experimente a quantidade de canela a gosto.

Variante minha: uso também bacon e acrescento repolho, cortado grosso.

 

 

Herança culinária

A minha culinária é um tripé: cozinha de autor, cozinha de família e cozinha tradicional (com relevo para a açoriana). Hoje, e em mais algumas notas, vou falar da minha herança familiar, escassa em bens mas rica em tradições, estórias, convívios, receitas de família. Estas dividem-se em três grupos. Primeiro os pratos do dia a dia, regionais ou correspondentes, em boa medida, à cozinha urbana de todo o país, muita da qual hoje em desuso.

Outro grupo, o das criações recentes, em boa parte devidas à minha avó materna, muito criativa e curiosa em cozinha, com destaque para o que toca a doces, alguns dos quais ainda hoje vendidos como especialidades nas pastelarias da sua Angra do Heroísmo.

Finalmente, o “património”, com algumas gerações, e tão invulgar que nunca vi tais receitas em outras casas. Em alguns casos sabemos quem a criou, essa bisavó ou aquela tia velha, mas outras são mistério.

Mistério interessante, porque a generalidade dessas receitas, ricas e por isso geralmente de jantar de festa, são de clara influência de alta cozinha, ao estilo francês que dominava os nossos restaurantes de hotel (que não existiam nos Açores). Uma hipótese plausível que ponho é a de um meu trisavô, que vinha com alguma frequência a Lisboa, levar de regresso, para além dos vestidos para mulher, filhas e netas – como me garantia a minha avó – também algumas receitas arranjadas no hotel.

Hoje descrevo duas, bastante invulgares, que ainda há dias fiz. Sendo já minha propriedade, e enriquecendo o “capital”, muitas vezes lhes dou um toque de personalização ou aperfeiçoamento técnico. Aqui, deixo as versões originais, registadas no livro d receitas da minha mãe.

Canja rica

Miúdos, patas e pescoço de uma galinha grande, eventualmente com alguma carne, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 3 gemas de ovos, meio limão, 1 dl de leite, sal, pimenta preta, 4 grãos de pimenta da Jamaica, 1 ramo de salsa, tomilho, maizena q. b., 50 g de massa de pérola (sagu).

Cozer em água os miúdos da galinha com as cebolas cortadas grosso, o alho pisado mantendo a película rosada e os temperos. Coar, misturar um fígado esmagado e voltar a coar. Arrefecer, indo ao frigorífico até a gordura ficar bem à superfície. Desengordurar. Bater as gemas com o sumo de limão, o leite e a maizena ou farinha. Juntar à sopa um pouco arrefecida, voltar ao lume mexendo sempre e engrossar, a lume baixo, sem deixar talhar as gemas.

Entretanto, inchar a massa pérola em água abundante durante mínimo de 30 min ou até inchar e cozer (juntar a massa com a água já a ferver), até as pérolas estarem transparentes mas não amolecidas demais, cerca de 30 minutos. Coar e passar por água fria. Juntar à sopa só à última hora.

Peixe assado com nozes e azeitonas

Para 4 pessoas. 1 bicuda grande (2 kg), 4 c. sopa de azeite, 4 c. sopa de vinagre, 4 c. sopa de banha, 1,5 c. sopa de farinha, 2,75 dl de caldo de peixe, 60 g de miolo nozes, 150 g de azeitonas pretas, sal e pimenta, salsa e estragão.

Untar uma assadeira com azeite e colocar o peixe, às postas grossas. Cobrir com o molho, feito com o azeite, o vinagre, a banha, a farinha diluída no caldo de peixe, tudo bem misturado, mais o miolo das nozes esmagado grosso e as azeitonas. Assar a 180º, 30-40 minutos, regando com frequência o peixe com o molho misturado à colher. 

Servir coberto com o molho apurado, com uma guarnição a gosto (tradicionalmente, na família, batatas salteadas ou puré de batata).

Nota – a bicuda, que nunca vi no continente, é um peixe do Atlântico Norte (mar alto) aparentado com a barracuda, mas bastante mais pequeno e com sabor mais elegante. A sua designação científica é Sphyraena viridensis. Na falta da bicuda, costumo usar garoupa ou, menos frequentemente, corvina.