Sobre João Vasconcelos Costa

Investigador em Virologia Molecular, reformado. Açoriano. Sempre de esquerda, anticapitalista, partidariamente não alinhado Ampla atividade de estudo e intervenção em política do ensino superior e investigação, com consultoria. Interesse lateral: gastronomia e culinária.

COVID-19: Notas de uma viagem à Dinamarca

As duas semanas que acabei de passar na Dinamarca foram uma experiência muito instrutiva em relação à prevenção e combate à COVID-19, lá e cá. A Dinamarca, ao longo do ano passado, foi muitas vezes referida como exemplo, principalmente para efeitos de comparação com a experiência desafiante da Suécia. Nós, tanto fomos igualmente caso milagre como estivemos nos antípodas. Quando cheguei à Dinamarca, a 5 de junho, a situação epidemiológica não era radicalmente diferente, até pior do que a nossa. Portugal tinha uma incidência (novos casos em 14 dias por 100000 habitantes) de 79 e a Dinamarca de 239, quase o dobro da linha vermelha portuguesa dos 120. Os dois países estavam iguais em mortalidade, 2 mortes quinzenais por milhão de habitantes. Os internamentos eram pouco importantes. Na vacinação, a Dinamarca estava mais adiantada, mas não significativamente.

Estive em Aarhus, uma cidade universitária com uma população muito jovem a encher as ruas do centro, a aproveitar os escassos dias de sol em tudo o que era bancos de rua e esplanadas (com as mesas sem distância de segurança), a formar grupos de quase uma dezena de jovens com cerveja na rua em boas doses, em conversas de voz bem alta. O mais estranho de tudo isto é que ninguém usava máscara. É uma decisão oficial certamente com critério, não qualquer negacionismo do valor da máscara, dado que ela estava a ser obrigatória nos transportes e em recintos fechados. Para minha grande surpresa, uma semana depois, ainda aliviaram mais. As máscaras deixaram de ser usadas no interior do comércio, nomeadamente nos supermercados e centros comerciais! Nos transportes, foram dispensadas para quem ocupava lugares sentados, sendo usadas só pelos viajantes em pé.

A Dinamarca tinha tido uma vaga epidémica no inverno de 2020, como toda a Europa e desconfinou progressivamente a partir de março. As medidas que estavam em vigor quando chegámos datavam de meados de março. Quanto às máscaras, o que já disse. Também não eram usadas nas aulas, em nenhum grau de ensino. O comércio funcionava normalmente, havendo apenas algumas lojas de rua mais pequenas que, por sua iniciativa, limitavam o acesso. Nas filas respeitava-se a distância (um metro) mas nas ruas muito movimentadas e estreitas do centro toda a gente se cruzava cotovelo com cotovelo.

A grande, enorme diferença para Portugal respeita à testagem. Ninguém pode fazer vida normal sem o seu passe covid, que atesta que se tem a vacinação completa há pelo menos duas semanas, ou que se teve COVID-19 e se recuperou, ou que se fez um teste de anticorpos há menos de 72 horas com resultado negativo. O passe é obrigatório para se ir ao trabalho presencial, às aulas, aos restaurantes e cafés, aos museus, aos cinemas e teatros. Na prática, toda a população é assim testada duas vezes por semana, gratuitamente, em muitos postos de testagem oficiais espalhados pela cidade. Isto significa um esforço de testagem, por habitante, cinco a dez vezes superior ao português, conforme as datas.

Da mesma forma, o controlo no aeroporto é mais rigoroso. À chegada, para além de os serviços de controlo covid verificarem o resultado do teste que levávamos, todos os passageiros não vacinados tiveram de repetir o teste de antigénio. No regresso a Portugal, o único controlo de certificado de testagem negativa foi feito pelo funcionário do aeroporto de partida, sem qualquer controlo oficial à chegada.

Desde o início da pandemia que tenho escrito repetidamente que o confinamento não pode ser uma estratégia em si mesma e continuada. Ele é a intervenção transitória necessária para se montar o dispositivo essencial de vigilância epidemiológica com base na testagem, quer a testagem de massa quer a testagem dirigida ao controlo das cadeias de transmissão (“track and trace”: isolamento, inquérito epidemiológico imediato, identificação e testagem dos contactos), como sempre se fez, sem os meios atuais, na epidemiologia clássica. 

A grande responsabilidade do nosso sistema de controlo da pandemia foi a incapacidade de montar eficazmente esse sistema de vigilância, confiando quase exclusivamente nas medidas de tipo confinamento ou de redução de contactos. Um exemplo incompreensível dessa atitude oficial é o facto de a testagem ter diminuído depois do desconfinamento quando, pelo contrário, o controlo do desconfinamento exigiria o reforço da testagem. Por isto, cada desconfinamento, em Portugal, é sempre seguido de um aumento de incidência, até ao confinamento seguinte, enquanto que, na Dinamarca, apesar do alívio progressivo das medidas, a incidência e a taxa de positividade decrescem constantemente em paralelo com o alívio de restrições.

Finalmente, algumas notas mais para além das medidas e da testagem. A COVID-19 está ausente das primeiras páginas dos jornais e dos noticiários e dá a impressão de que o país é muito pobre em especialistas, resultado provável do seu fraco nível científico e cultural. Só há um ou dois cientistas de alta posição universitária que são ouvidos quando há uma notícia importante de natureza científica que tem de ser “traduzida” para o público. Estão a precisar que lhes mandemos alguns dos nossos especialistas, uns matemáticos que sabem de vacinas ou uns sociólogos que sabem de virologia. Pelo contrário, a informação epidemiológica na Dinamarca é exaustiva, online, e as pessoas tem grande confiança nas autoridades de saúde.

Pelas mesmas razões, por falta de especialistas, nunca conseguiram fazer reuniões de Infarmed. O governo só dispõe da opinião do Instituto Serológico do Estado, que, em relação à epidemiologia, combina e centraliza as funções de recolha de dados, vigilância e investigação que, cá, se dividem entre a DGS e o INSA Ricardo Jorge. Quanto à qualidade do Instituto Serológico, basta, mesmo para um leigo, visitar o seu sítio e verificar a extensão e impacto das suas atividades técnicas e de investigação, nos mais diversos domínios da saúde pública, com destaque para as doenças infeciosas.

Com o dobro da população e pior nível sanitário, Portugal desbaratou o que tinha de experiência epidemiológica, inclusive tropical (importante numa era atual de globalização das doenças). Desde há algumas décadas que tem crescido a moda de transformação da Saúde Pública numa área com pendor acentuado de ciências sociais – política, economia, sociologia, pedagogia, tudo da saúde, é certo – com crescente atrofia da epidemiologia, reduzida a uma ou duas equipas universitárias, a um pequeno departamento do INSA e algumas experiências marginais. Como exemplo extremo, dois ciclos de estudos universitários de pós-graduação em Saúde Pública em Portugal não têm no corpo docente um único doutorado em epidemiologia. A própria formação dos médicos especialistas de saúde pública, que depois estão no terreno a combater a COVID-19, não pode deixar de se ressentir disto. Não haverá no PRR uma fatiazinha de dinheiro para a formação de uma massa crítica de epidemiologia em Portugal?

O pós-modernismo de Boaventura Sousa Santos

O niilismo político do pós-modernismo extremado, consequência lógica da sua negação do processo histórico tensional e dialético e dos conflitos sociais objetivos, constitui uma armadilha para os pós-modernistas que se querem manter numa posição de luta contra o poder, melhor dito, na sua conceção, contra a rede de poderes. Os poderes disseminados, difusos, à Foucault, que teriam esvaziado o próprio poder político e jurídico, remetem o poder do Estado para uma entre múltiplas e variadas formas, das quais o poder do Estado nem seria a mais importante.

Desta armadilha se aperceberam alguns pós-modernistas com posições políticas de oposição ao capitalismo – pelo menos aos seus malefícios. Um exemplo marcante é Boaventura Sousa Santos, que desenvolveu, desde o seu livro “pela mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade” (Edições Afrontamento, Lisboa, 1999), uma abordagem crítica pós-modernista, a que chama pós-modernismo de oposição, assumindo uma posição de esquerda (embora não utilizando o termo e possivelmente nem perfilhando a dicotomia esquerda-direita) e reconhecendo, entre os centros da modernidade formadores das narrativas ideológicas e dos padrões epistémicos, a tríade de sociedades capitalistas, patriarcais e colonialistas. 

A sua fuga à armadilha de Foucault é bem expressa pela sua afirmação de que “Foucault leva longe demais o argumento da proliferação das formas de poder, e a tal ponto que ele se torna reversível e autodestrutivo. É que se o poder está em toda a parte, não está em parte nenhuma” (pág. 111). No entanto, se Boaventura Sousa santos se desmarca dos pós-modernistas mais extremados, no que respeita à política, é fiel ao essencial da filosofia pós-modernista, do seu relativismo cultural, da negação da racionalidade herdada do iluminismo. Atente-se, por exemplo, a que, para Boaventura Sousa Santos, “alternativas [JVC: à ciência] da metafísica, da astrologia, da religião, da arte, da poesia também são explicações possíveis da realidade” (“Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna”. Estudos Avançados, 1998, vol.2, nº.2, pág.68.)

A proposta pós-modernista de oposição merece discussão cuidadosa, não só pela qualidade intelectual do autor e a forma elaborada da sua apresentação, mas também porque Boaventura Sousa Santos tem considerável impacto em alguns setores de esquerda, com afloramentos no Bloco de Esquerda português – talvez pouco aparentes para o observador apressado e mais interessado nos factos políticos – e principalmente na América latina, em boa parte pelo sua participação influente no Fórum Social Mundial. 

Além disso, deve-se reconhecer validade à análise crítica de muitas manifestações e fenómenos na fase atual da modernidade. Mais adiante, dedicarei todo um capítulo a isso que, por analogia, posso chamar um novo “momento Polanyi”. 

Claro que há grande mudança na modernidade, principalmente a partir do último quartel do século XX, mas é uma fase avançada ou uma rotura, pós-modernidade? Não é jogo de palavras. A questão é se precisamos de novo paradigma ou se as teorias da modernidade, nomeadamente o marxismo, ainda têm validade para explicar e articular dialeticamente a perceção dessa mudança com a ação transformadora, ou se essas teorias estão refutadas e exigem um novo paradigma. A argumentação contrária, nomeadamente a do marxismo, não tem sido objetiva nem científica-racional, pelo que não cumpre os requisitos de refutação, no sentido usado na epistemologia das ciências.

Observando de forma muito próxima a acelerada mudança social e tecnológica, a minha concordância com Boaventura Sousa Santos para no fechar desse diagnóstico. É muito diferente a minha visão das causas, enquadramento e hierarquização dessas transformações e, muito mais, as perspetivas que delas decorrem para a ação política e o objetivo socialista.

O essencial da base de partida da sua formulação é a ideia de que “as sociedades capitalistas são formações ou configurações políticas constituídas por quatro modos básicos de produção de poder que se articulam de maneiras específicas.” Estes modos cruzam matricialmente  quatro espaços – o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço da cidadania e o espaço mundial, em que “cada espaço estrutural é um fenómeno complexo constituído por cinco componentes elementares: uma unidade de prática social, uma forma institucional privilegiada, um mecanismo de poder, uma forma de direito e um modo de racionalidade” (pág. 112). A construção é intelectualmente atraente, racional e sem a retórica do pós-modernismo filosófico, mas, a meu ver, é improdutiva em termos práticos, particularmente políticos, esvaziando-se nas propostas de ação e mesmo na formulação de objetivos.

Um aspeto da crítica da modernidade política que assume importância – também prática – em Boaventura Sousa Santos é o que se refere à sua discussão do marxismo – todo o capítulo 2, quase vinte páginas. “Sendo este a traço muito grosso o quadro geral da condição do presente, o que tem o marxismo a contribuir para a sua compreensão e superação? À primeira vista, muito pouco. O marxismo é uma das mais brilhantes reflexões da modernidade, um dos seus produtos culturais e políticos mais genuínos. Se a modernidade se torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo será mais parte do problema que defrontamos do que da solução que pretendemos encontrar.” (pág. 112).

A leitura do capítulo surpreende. Apesar da erudição da história que faz do marxismo, repleta de citações, julgo que a sua visão do marxismo olha para um marxismo de caricatura do marxismo genuíno, muito mais próximo da cartilha escolástica com que sufocaram o marxismo do que de uma leitura exigente e refletida dos textos originais. Nesse capítulo de “Pela mão de Alice”, a crítica é feita invocando muitos autores marxistas modernos, a que também irei mais adiante, mas é muitas vezes difícil adivinhar-se o fundamento, de sua reflexão, da crítica de Boaventura Sousa Santos. É curioso, por exemplo, que a única referência direta a um texto de Marx seja a propósito de uma “boutade” bem conhecida e mal interpretada, de que o próprio Marx não seria marxista. 

Deixo de lado agora esta discussão, que retomarei quando se tratar da crítica ao “marxismo oficial” e da necessidade de remarxizar o marxismo. Faço notar apenas, neste momento, a ausência de discussão de um aspeto importante do pensamento de Marx, a questão da emancipação. É surpreendente, quando Boaventura Sousa Santos faz da emancipação o eixo principal da sua teoria pós-modernista de oposição, como veremos a seguir. É pena que não discuta, na sua crítica ao marxismo, por exemplo “A questão judaica”, trabalho em que Marx, apesar de se dirigir principalmente ao problema dos judeus e da sua condição religiosa, a coloca na perspetiva mais abrangente de toda a emancipação humana.

O pós-modernismo de oposição santiano baseia-se em que “a transição paradigmática reside numa dupla verificação: em primeiro lugar, que as promessas da modernidade, depois que esta  deixou reduzir as suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser cumpridas; e, em segundo lugar, que depois de dois séculos de promiscuidade entre modernidade e capitalismo tais promessas, muitas delas emancipatórias, não podem ser cumpridas em termos modernos nem segundo os mecanismos desenhados pela modernidade” (pág. 35).

Retendo a importância das promessas sociais da modernidade, rejeita todavia os métodos e a racionalidade, bem como os meios de intervenção deles decorrentes. Da mesma forma, culpa esse paradigma pela incapacidade de cumprimento dessas promessas. Essa incapacidade radicaria, essencialmente, na perda de validade dos elementos constitutivos da modernidade – a ciência, a racionalidade, a noção de progresso e a universalidade dos valores essenciais – em virtude da promiscuidade que se foi estabelecendo entre a modernidade e o capitalismo.

O que nunca fica claro é como é que o seu pós-modernismo de oposição vai ultrapassar esse bloqueio e abrir novas rotas ao caminho para a transformação. As propostas desse pós-modernismo não vão muito mais longe do que a mais convencional social-democracia, com roupagens de novas elaborações teóricas. Julgo mesmo poder-se dizer, de certa forma, que a proposta santiana, acabando por se centrar principalmente na democracia e nas emancipações – no plural, por lhe serem equiparáveis a emancipação política, a da opressão no trabalho, a das mulheres ou a das minorias étnicas – acaba por prolongar, ainda que aprofundando e dando-lhe novos matizes, a conceção liberal, terreno de onde não se afasta e com que não estabelece uma verdadeira rotura.

Sendo equivalentes os “modos de produção de poder” e os seus respetivos espaços, sem hierarquização, as emancipações só podem encontrar o maior denominador comum na democracia. É certo que Boaventura Sousa Santos ultrapassa o liberalismo tradicional, defendendo formas diversas de democracia participativa, mas os seus pressupostos teóricos não lhe permitem ir mais longe do que uma proposição de “democratização da democracia” – democracia representativa, entenda-se. E é ao domínio da democracia que se resume principalmente a crítica do capitalismo: “O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático”. E nem é certo que possa vir a sê-lo: “o aprofundamento da democracia representativa através de outras formas mais complexas de democracia pode conduzir à elastização e aumento do máximo de consciência possível, caso em que o capitalismo encontrará um modo de convivência com a nova configuração democrática, ou pode conduzir, perante a rigidificação desse máximo, a uma ruptura ou melhor, a uma sucessão histórica de micro-rupturas que apontem para uma ordem social pós-capitalista. Não é possível determinar qual será o resultado mais provável. A transformação social ocorre sem teleologia nem garantia. É esta indeterminação que faz o futuro ser futuro” (págs. 232-233). 

É fácil concordar com a necessidade de aprofundamento da democracia, com a efetivação de uma verdadeira democracia participativa e com a defesa da valorização da sociedade civil. No entanto, não vejo em que é que isto é uma rotura ou mudança radical dos ideais da modernidade, sendo propostas programáticas tradicionais de variadas correntes de esquerda, muito antes da novidade pós-modernista.

Além do mais, a democratização da democracia e a pretendida igualdade de condições na competição dos paradigmas – na linguagem pós-modernista – coloca o problema essencial das formas de luta para esse objetivo, já que, obviamente, ele não é pacificamente obtido sob o domínio do capital. As propostas do pós-modernismo de oposição são vagas e apontando, de forma muito genérica, para uma ação política com a tática de lutas diversificadas em diversas frentes de ataque aos poderes estabelecidos – repito: capitalista, patriarcal e colonial —, tanto lutas diretas como institucionais. Note-se bem que se postula a igualdade de estatuto e relevo de todas estas formas de dominação ou opressão, e, por consequência, das lutas que contra elas se fazem. Pelo contrário, os marxistas modernos, reconhecendo a importância das outras formas de dominação, enquadram-nas porém, no papel essencial da contradição capital-trabalho, não as autonomizando do quadro geral do capitalismo.

É patente que não há no pós-modernismo de oposição uma perspetiva de diferença radical entre o Estado burguês, capitalista, e um Estado controlado pelas forças do trabalho. Estamos, julgo, perante uma visão típica de Estado interclassista, mesmo que com maior fundamentação democrática, uma visão que, afinal, não se afasta muito do essencial da velha social-democracia.

E a incerteza “que faz o futuro ser futuro” – uma frase bonita, mas não mais – também justifica que não haja um esforço, mesmo que em termos gerais de objetivos centrais, para se delinear o que pode ser – ao menos o que se deseja que seja – a “ordem social pós-capitalista”.

Com isto, não se fica surpreendido com que o que Boaventura Sousa Santos escreve sobre o socialismo. Para ele, libertada a ideia do socialismo da caricatura do “socialismo real” (até aqui estamos de acordo), o socialismo volta a ser apenas “a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor, uma ideia que, enquanto utopia, é tão necessária quanto o próprio capitalismo”. E novamente a centragem absoluta nas emancipações diversificadas: “designar-se o conjunto das práticas emancipatórias por socialismo não tem outra legitimidade senão a que lhe advém da história” (pág. 238).

Fazendo recordar o velho revisionista Bernstein, para quem o movimento é mais importante do que o objetivo, o pós-modernismo de oposição não vai além da proposta continuista e afinal reformista de lutas soltas, não obrigatoriamente articuladas, atingindo cada um dos poderes difusos.

Certamente que não em nome do socialismo. “(…) o socialismo não será nunca mais do que uma qualidade ausente [JVC – o que não traz muito de novo ao “significante vazio” de Laclau]. Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória do que existe sem, contudo, nunca se transformar em algo existente. (…) a transformação emancipatória será cada vez mais investida de negatividade. Sabemos melhor o que não queremos do que o que queremos. Nestas condições, a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada. O socialismo é a democracia sem fim [JVC – itálico no original]” (pág. 238).

Dito tudo isto, não se pretende, todavia, que não seja necessário ter em conta muitas das críticas pós-modernistas a visões “positivistas”, simplistas, dos processos históricos e à ação política decorrente dessa visão; o mesmo também em relação à incapacidade de muitas correntes de esquerda para acompanharem a imensa mudança social ocorrida no último meio século. Adiante, neste livro, serão frequentes discussões desse tipo, mas sem que isto signifique simpatia global para com o pós-modernismo político radical.

Pode-se concordar na dúvida sobre a “racionalidade do real”, de Hegel, se tomada em absoluto. Pode-se concordar com que o socialismo real, soviético, pugnou pelo produtivismo predador, na sua ambição suprema de ultrapassar economicamente os Estados Unidos. Pode-se concordar com que o enorme aumento da riqueza não teve correspondência no desenvolvimento humano. Pode-se concordar com que o papel central do operariado na transformação para o socialismo se relativizou pela maior complexidade da estrutura de classes e das formas de conflito capital-trabalho. E muito mais. Também a maior consciência, traduzida em lutas, das opressões patriarcais, raciais e internacionais.

No entanto, na minha perspetiva, não é no quadro do capitalismo, mesmo com aprofundamento da sua democracia, que se resolvem estas contradições, nem se pode desenquadrar do capitalismo e da sua principal contradição – capital-trabalho – as outras opressões. contradições por um lado, opressões por outro, são inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, como outras anteriores que foram resolvidas em sínteses dialéticas, em negações de negação, que acabaram por – até agora! – permitir a sobrevivência do capitalismo, adaptado a novas circunstâncias; adaptação esta que, todavia, vai sempre gerando novas contradições.

A superação dialética final dessas crises significa o socialismo. Mas a natureza do socialismo não é fazer melhor o mesmo que faz o capitalismo. É fazer e viver outra coisa, como negação radical do capitalismo. 

Máscaras – como, quando e onde?

De todas as medidas em curso, por toda a parte, para combate à COVID-19, o uso generalizado de máscara é a mais controversa e não consensual. Repare-se que vou discutir principalmente isto, o uso generalizado, não o uso em circunstâncias específicas. Julgo ser impossível uma recomendação geral, variando muito com a situação epidemiológica, a eficácia de outras medidas e as condições sociais e culturais específicas de cada país. Da Europa à Índia vai uma grande distância, não só geográfica.

O que vou dizer é uma opinião pessoal, embora alicerçada no conhecimento da transmissão do SARS-CoV-2 e na leitura crítica de dezenas de artigos científicos sobre a transmissão, em particular sobre as máscaras. Não sou especialista em intervenções de controlo epidemiológico, mas também é certo que os especialistas, dispondo da mesma informação que eu, têm sempre de atuar com grande margem de subjetividade, “coeficiente de precaução” (impossível de determinar com rigor científico) e, muito importante, tendo em conta fatores políticos e sociais. 

A política manda. Numa situação de recrudescimento da pandemia na Europa, de facto a segunda onda que se receava, os governos consideram ter de mostrar decisão política e adotar novas medidas. Em muitos casos – seguramente em Portugal, ainda só com surtos e não transmissão comunitária, como há meses, é geral a opinião de que o fundamental é a velha política de “track and trace”. Com poucos recursos para isto, com a impossibilidade de manter e reforçar o dispositivo posto em campo na Grande Lisboa em maio-junho, pode ser tentador, politicamente, fazer espetáculo com medidas pouco significativas ou exageradas, a acalmar as hostes.

Inicialmente – e ainda hoje – a base de avaliação da importância do uso de máscara teve em conta principalmente dados gerais sobre a generalidade das infeções respiratórias, em particular as epidemias de gripe. Há forte evidência retrospetiva de que o uso de máscaras, desde a gripe espanhola, foi positivo como elemento de combate às pandemias. No entanto, pode ser incorreto extrapolar os conhecimentos da gripe para a COVID-19.

De facto, por exemplo, a estratégia chinesa inicial, que depois condicionou muito a dos restantes países, deve muito mais à sua experiência anterior com o SARS, em 2002-2003, em que o bloqueio ou confinamento (“lockdown”) foi uma estratégia bem sucedida. A analogia resultou em duas premissas que depois não se verificaram corretas: que o vírus só era expelido por infetados com sintomas e que a transmissão se fazia por gotículas de tosse, relativamente pesadas.

Na realidade, como se podia suspeitar dos parâmetros de transmissão, a situação era mais próxima da gripe. Sendo ainda duvidoso que haja transmissão por assintomáticos verdadeiros, isto é, os infetados que nunca chegam a apresentar sintomas, não há dúvidas de que os pré-sintomáticos são infetantes no dia ou nos dois dias anteriores ao aparecimento de sintomas. Por outro lado, sabe-se hoje que a transmissão se faz pelo transporte aéreo do vírus por gotículas de um contínuo de dimensões, desde as mais pesadas até aerossóis com maior capacidade de dispersão e maior tempo de permanência na atmosfera. Será isto suficiente para justificar o uso generalizado de máscara?

Comecemos pela evidência científica, a única que interessa. Argumentos como os usados inicialmente por médicos sem qualificação científica, como o de que a República Checa, com uso geral de máscara, tinha no auge da primeira onda metade dos casos de Portugal. Claro que é um argumento falacioso, isolando um único fator do conjunto de medidas. Era como se se dissesse que a Grécia também, por os gregos serem grandes consumidores de azeite, esquecendo que os super-atingidos Espanha e Itália também o são. Ou, menos caricaturalmente, valorizar a vacinação com BCG, como se fez, por correlações não obrigatoriamente significando causalidade e sem estudos controlados.

Os estudos conhecidos, para além dos que se referem à gripe, são principalmente de dois tipos: os que abordam a permeabilidade ao vírus e os baseados em modelos de simulação. Estes últimos são inconclusivos, com resultados de redução de risco que variam entre 6 e 80%.

Os muitos estudos sobre a retenção de vírus pelas máscaras também mostram resultados muito variados e pecam por serem obtidos em condições experimentais dificilmente transponíveis para a realidade. A retenção de partículas geradas por sopros artificiais não é uma situação natural e mede principalmente as características do tecido ou outro material, não a da máscara concreta, aplicada a faces concretas.

As máscaras não são todas iguais e, para cada tipo, há certificações diferentes, sendo praticamente impossível certificar todas as máscaras comerciais em uso. Como é sabido, há três tipos de máscara: os ventiladores de tipo N95/FFP2, usados só nos hospitais e outras situações como equipamento individual de proteção do pessoal de saúde; as máscaras cirúrgicas; e as máscaras de tecido, industriais ou artesanais. São casos diferentes que devem ser tratados diferentemente. Por exemplo, as máscaras de algodão, variando com o tipo de tecido, têm menos 30 a 50% de eficácia de retenção do que as máscaras cirúrgicas, uma variação considerável.

Também é preciso distinguir os dois tipos de retenção: de partículas expelidas e de partículas inaladas. Na prática, isto significa que é diferente o valor do uso de máscara como elemento de proteção social, populacional, ou como elemento de proteção individual de pessoas não infetadas. Não há dúvida de que a máscara é importante para reduzir o risco de um assintomático transmitir a infeção, mas isto tem de ser pesado com a probabilidade de tal pessoa estar em circulação e em que local ou circunstâncias. Já quanto à capacidade de prevenção da aquisição da infeção por pessoas não infetadas, os dados objetivos levantam muitas dúvidas. Pesadas ambas as situações, há que decidir em que circunstâncias é que o primeiro caso representa um risco considerável e em que medidas concretas isto se deve traduzir.

É importante também não isolar o uso da máscara de outras medidas e enquadrá-lo nas circunstâncias específicas. Veja-se o caso dos países escandinavos, onde o uso da máscara é muito reduzido, quase que só nos transportes públicos. Não falo só da Suécia, mas também dos outros três, que, quando a segunda onda já atinge grande parte da Europa, continuam com um número muito baixo e controlado de novos casos. A Suécia, como se sabe é um caso particular. Continua a ser muito criticada pela elevada mortalidade inicial, mas que não decorreu diretamente da estratégia adotada de autoconfinamento moderado. A mortalidade, devida à forma como ocorreram e foram tratadas as infeções nos lares, já foi corrigida. Se virmos os dados depois disso, por exemplo a partir de julho, verificamos que o número de mortes diário é de cerca de 6 e a letalidade baixou para 3%, contra os 8% de fim de junho. Dito isto, a não recomendação do uso de máscara nos países escandinavos deve ser avaliada em termos também do cumprimento da distância física, da proibição de ajuntamentos e da redução efetiva dos contactos sociais, em geral.

Por outro lado, há uso e uso de máscara. Contas por alto e da minha avaliação empírica na minha zona – uma zona socialmente média ou média-alta – estimo em mais de 70% a percentagem de pessoas que usam máscara na rua, sem se cruzarem com ninguém ou a passearem o cão. Agora menos, mas até via pessoas com máscara e viseira. Assim, poderia dizer-se que não causaria grande perturbação a obrigatoriedade de uso de máscara mesmo em espaços abertos, apesar do desconforto e até, em alguns casos, de dificuldade respiratória ou de comunicação. No entanto, também é significativa a percentagem de pessoas que observo a não utilizarem devidamente a máscara, o que pode trazer efeitos perversos.

Duvido também da segurança pessoal – com reflexos sociais – com que ela é usada ou tratada. Quantas pessoas não estarão a usar prolongadamente a mesma máscara cirúrgica? Diz-me um farmacêutico ter a impressão (fiquemos pela impressão) de que a venda de máscaras descartáveis não está em proporção ao seu uso. E quantas vezes vejo retirarem a máscara, pegarem nela de qualquer maneira e pô-la no bolso? E quantas vezes lavam, e como, as máscaras de tecido?

Mais importante do que tudo isto, como efeito perigoso da obrigatoriedade do uso generalizado de máscara, é o risco real do sentimento falso de segurança, com a tendência para relaxamento de outras precauções, estas sim indubitavelmente importantes – o distanciamento físico, a lavagem frequente das mãos e a etiqueta respiratória.

Concluindo, em termos práticos e na minha modesta opinião:

O uso de máscara deve ser obrigatório em espaços fechados, muito em particular nos transportes, como está em vigor.

Em espaço aberto, e como medida de precaução talvez exagerada mas logicamente admissível, pode justificar-se o seu uso em circunstâncias particulares:
— em zonas, bairros ou freguesias com alta incidência de novos casos.
— em circunstâncias em que não é possível assegurar a distância mínima, por exemplo manifestações, feiras, mercados ao ar livre, áreas de grande concentração de turistas ou passeantes, zonas de deixar ou receber crianças das escolas, etc. ou mais geralmente, em qualquer caso em que, num espaço aberto, haja ocupação superior a 15 pessoas por 10 m2 (distância entre elas de cerca de 1,6 m) e durante mais de 15 minutos.

A pensar já na segunda onda

Depois da Noruega, é agora o governo francês que afirma que, na previsão de uma segunda onda, não será adotado novamente o confinamento (“lockdown”). Em vez disto, tomarão medidas dirigidas. Não sei bem o que querem dizer com isto mas presumo que se pense numa estratégia baseada em “seguir e rastrear” (“track and trace”): detetar precocemente os novos casos e isolá-los eficazmente, identificar os contactos e avaliar o seu grau de risco de infeção e transmissão, testá-los periodicamente e mantê-los em quarentena.

Atualmente, já se conhece o suficiente para se saber que é provavelmente a melhor estratégia, sem descurar os cuidados com outros fatores — ajuntamentos, concentração demorada em lugares fechados e em transportes públicos sobrelotados, distanciamento físico, lavagem frequente das mãos (embora a transmissão por gotículas depositadas pareça já ter relativamente pouca importância), etiqueta respiratória. Com isto, muitos países europeus estão a conseguir conter rápida e eficazmente focos que vão aparecendo, com um grau de medidas gerais no desconfinamento muito mais leve do que o que estamos a praticar.

Tenho visto alguma confusão em relação ao “seguir e rastrear” generalizado como modelo asiático. De facto, houve três modelos asiáticos, embora com sobreposições. Na China, o rastreamento teve muito menor relevo do que o isolamento massivo, muitas vezes com toda a gente de um prédio inteiro retida em casa, sem nenhuma possibilidade de saída do domicílio ainda que não fossem contactos próximos. O grande modelo de “seguir e rastrear” não foi chinês, mas sim sul-coreano, com grande uso também de meios tecnológicos de inteligência artificial (que agora a Alemanha já está também a usar com intensidade). Outros países asiáticos, num terceiro modelo, confiaram principalmente no encerramento muito rigoroso da fronteiras.

Finda a primeira fase da pandemia na Ásia (embora com casos residuais na Coreia do Sul e surtos importantes em Singapura e no Japão), sabemos hoje que a estratégia coreana foi superior, em termos de custos-benefícios. Com muito menos sacrifício pessoal e económico do que na China, a Coreia do Sul, com a mesma população que a província chinesa de Hubei, que concentrou a maior parte da epidemia, teve muito menos casos, cerca de cinco vezes menos e 16 vezes menos mortes.

Portugal está muito menos preparado do que outros países europeus para uma estratégia eficaz de “seguir e rastrear”. Não há falta de recursos no que se refere a testes, sendo um dos países com. maior número de testes por habitante. No entanto, não é claro se isto se traduz num uso criterioso da testagem, que muitos dados indicam ter sido feita de forma não suficientemente orientada para a vigilância epidemiológica eficaz, nomeadamente na testagem de contactos. O que faltam são os recursos humanos e, provavelmente, a boa organização do sistema de vigilância. Aliás, não é só nesta situação. Quem lida com doenças infeciosas de vários tipos sabe bem como são precários ou inexistentes na prática os sistemas de vigilância epidemiológica.

Tenho lido sinais de algum fatalismo: não formámos especialistas de saúde pública em número suficiente e não podemos inventá-los agora, nem sequer recorrendo a enfermeiros para o rastreio. Não é a verdade completa. O rastreio não exige obrigatoriamente médicos ou enfermeiros. Pode ser feito, até por “call centers”, por pessoas com um bom nível educacional e de infoliteracia, habituadas a inquéritos, sejam até os de marketing. A decisão sobre as medidas a adotar em relação a cada contacto de risco é que compete ao médico de saúde pública, mas é só o passo final do processo (fora o acompanhamento, que também não é preciso ser feito exclusivamente por pessoal de saúde).

Um sistema de vigilância epidemiológica capaz de conter rapidamente os focos que certamente iriam aparecer foi um dos critérios da OMS e da Comissão Europeia para o desconfinamento. Tivemos o período de confinamento para preparar um sistema capaz de vigilância epidemiológica mas, chegados ao esgotamento das possibilidades económicas, sociais e políticas do confinamento, temos um sistema comprovadamente deficiente. Ao desconfinar, a Alemanha, por exemplo, dispõe de 21000 rastreadores, um por cada 4000 habitantes, distribuídos por 400 centros. Berlim, duplicou o número de elementos do seu sistema. O Reino Unido contratou celeremente 18000 pessoas para esse efeito e só Madrid contratou mais 770 elementos.

Não é fácil apurar os números em Portugal, onde a transparência da informação fica atrás de muitos outros países europeus. Conhecem-se alguns números locais, pouco animadores. Por exemplo, segundo informações colhidas na imprensa, a Amadora terá atualmente cerca de um rastreador por 18000 habitantes, muito longe da taxa alemã ou da recomendação internacional de 1 por 3300. Também em Loures e Odivelas se noticia que há quinze rastreadores, o que, a ser verdade, significa um rastreador para 23000 habitantes.

Não há tempo a perder, porque o outono já não vem longe. A prioridade das prioridades é a contratação de rastreadores. Esqueçam-se os entraves burocráticos, arranje-se financiamento, invente-se uma fórmula de contrato fácil, rápido e aliciante. Ou comece-se já a pensar nos termos de novo confinamento, talvez necessariamente tanto ou mais rigoroso do que o que tivemos.

Questões em aberto sobre a imunidade contra o SARS-CoV-2

Há qualquer coisa estranha que ainda não estamos a ver, a matéria negra como chamou Karl Friston, que ele detetou com o seu modelo dinâmico bayesiano, que me parece mais potente e realista do que os tradicionais SIR. Uma hipótese plausível é que haja alguma imunidade prévia na população, a explicar a relativa facilidade com que se tem contido a pandemia em muitos países, em especial na Ásia e na Europa.

Só tenho estudado bem a situação europeia, em que a dinâmica da epidemia levanta muitos problemas, com disparidades nacionais e regionais difíceis de explicar. Têm-se adiantado muitas explicações parcelares (diferenças nos lockdowns e tempo a que foram decididos, diferenças de sistema de notificação, diferenças no número de testes feitos) mas não me convencem, globalmente.

Os dados serológicos já conhecidos indicam seroprevalências geralmente muito baixas, sempre abaixo dos 10%, o que não é muito animador em relação à aquisição da imunidade de grupo. No entanto, os testes usados são específicos para o SARS-CoV-2 e nada dizem sobre a hipótese de outros tipos de imunidade, nomeadamente em relação a outros coronavírus. Tentei estudar o que se sabe sobre imunologia dos coronavírus endémicos, mas é difícil. Nunca mereceram muita atenção e só há estudos dispersos. Nem sequer há estudos serológicos populacionais consistentes. 

Cada vez mais há gente a postular alguma imunidade cruzada para explicar o que parece ser algum nível de resistência à infeção, o R0 muito mais baixo do que a maioria dos vírus respiratórios e a alta percentagem de assintomáticos (verdadeiros, não falo dos pressintomáticos). Estudar o estado imunológico desses assintomáticos em relação aos coronavírus endémicos (OC43, HKU1, 229E e NL63) parece-me importante. Há vários casos a considerar:

1. Antigénio comum de grupo. Os coronavírus partilham um antigénio de grupo, a proteína N, a que está ligada ao RNA. Mas não há nenhum estudo sobre a possibilidade de os anticorpos anti-N serem neutralizantes. Sendo uma proteína interna, não envolvida na adsorção do vírus, a presunção lógica é de que esses anticorpos não serão protetores.

Além disto, parece-me difícil o estudo experimental porque os infetados com SARS-CoV-2 também terão anticorpos contra esse antigénio de grupo e será difícil fazer o tratamento estatístico disso — mas não sou especialista.

2. Imunidade inata. Não confundir com imunidade herdada materna. É a primeira barreira, primitiva e inespecífica contra vírus, principalmente de RNA. No início da infeção são produzidos pequenos RNA virais que induzem a síntese de inteferon beta. Pode-se pôr a hipótese de diferenças individuais ou genéticas, porque há vários genes envolvidos na síntese de interferão. 

No caso do SARS-coV-2 há dois artigos publicados, com indicações contraditórias. Num, mostra-se que este vírus tem um gene para uma proteína não estrutural, ORF3b, que é truncado em relação aos outros genomas de coronavírus e que, possivelmente por isto, bloqueia a produção de interferão. O outro artigo, pelo contrário, mostra que a expressão do genoma do vírus vai em paralelo com um aumento da expressão dos genes envolvidos na síntese de interferão.

3. Imunidade cruzada. Não é o mesmo que imunidade comum contra o antigénio de grupo e pode ser mais fácil de estudar, desde que se disponha de testes para os quatro corona endémicos. É curioso que ainda não se tenha estudado isto, virologicamente, em testes de neutralização. Talvez por não haver anticorpos monoclonais suficientemente bem caracterizados para os endémicos. Só há evidência indireta, por estudo de células T CD4+. Já há mais do que um artigo mostrando que mesmo indivíduos nunca expostos ao SARS-CoV-2 têm células CD4+ circulantes que reconhecem epítopos de vários antigénios virais, incluindo a proteína S, de ligação às células. O que não se testou foi se essas células T também reconhecem epítopos de outros corona.

4. Imunidade celular. Os mesmos artigos também mostram que há células T CD8+ citolíticas para as células infetadas. Sabe-se que, em outros vírus, o ataque precoce às células infetadas, mais do que a neutralização do vírus por anticorpos, pode ser uma resposta imune muito eficaz, quebrando a cadeia de transmissão célula a célula. Novamente, poderá eventualmente haver aqui imunidade cruzada com os outros corona.