Máscaras – como, quando e onde?

De todas as medidas em curso, por toda a parte, para combate à COVID-19, o uso generalizado de máscara é a mais controversa e não consensual. Repare-se que vou discutir principalmente isto, o uso generalizado, não o uso em circunstâncias específicas. Julgo ser impossível uma recomendação geral, variando muito com a situação epidemiológica, a eficácia de outras medidas e as condições sociais e culturais específicas de cada país. Da Europa à Índia vai uma grande distância, não só geográfica.

O que vou dizer é uma opinião pessoal, embora alicerçada no conhecimento da transmissão do SARS-CoV-2 e na leitura crítica de dezenas de artigos científicos sobre a transmissão, em particular sobre as máscaras. Não sou especialista em intervenções de controlo epidemiológico, mas também é certo que os especialistas, dispondo da mesma informação que eu, têm sempre de atuar com grande margem de subjetividade, “coeficiente de precaução” (impossível de determinar com rigor científico) e, muito importante, tendo em conta fatores políticos e sociais. 

A política manda. Numa situação de recrudescimento da pandemia na Europa, de facto a segunda onda que se receava, os governos consideram ter de mostrar decisão política e adotar novas medidas. Em muitos casos – seguramente em Portugal, ainda só com surtos e não transmissão comunitária, como há meses, é geral a opinião de que o fundamental é a velha política de “track and trace”. Com poucos recursos para isto, com a impossibilidade de manter e reforçar o dispositivo posto em campo na Grande Lisboa em maio-junho, pode ser tentador, politicamente, fazer espetáculo com medidas pouco significativas ou exageradas, a acalmar as hostes.

Inicialmente – e ainda hoje – a base de avaliação da importância do uso de máscara teve em conta principalmente dados gerais sobre a generalidade das infeções respiratórias, em particular as epidemias de gripe. Há forte evidência retrospetiva de que o uso de máscaras, desde a gripe espanhola, foi positivo como elemento de combate às pandemias. No entanto, pode ser incorreto extrapolar os conhecimentos da gripe para a COVID-19.

De facto, por exemplo, a estratégia chinesa inicial, que depois condicionou muito a dos restantes países, deve muito mais à sua experiência anterior com o SARS, em 2002-2003, em que o bloqueio ou confinamento (“lockdown”) foi uma estratégia bem sucedida. A analogia resultou em duas premissas que depois não se verificaram corretas: que o vírus só era expelido por infetados com sintomas e que a transmissão se fazia por gotículas de tosse, relativamente pesadas.

Na realidade, como se podia suspeitar dos parâmetros de transmissão, a situação era mais próxima da gripe. Sendo ainda duvidoso que haja transmissão por assintomáticos verdadeiros, isto é, os infetados que nunca chegam a apresentar sintomas, não há dúvidas de que os pré-sintomáticos são infetantes no dia ou nos dois dias anteriores ao aparecimento de sintomas. Por outro lado, sabe-se hoje que a transmissão se faz pelo transporte aéreo do vírus por gotículas de um contínuo de dimensões, desde as mais pesadas até aerossóis com maior capacidade de dispersão e maior tempo de permanência na atmosfera. Será isto suficiente para justificar o uso generalizado de máscara?

Comecemos pela evidência científica, a única que interessa. Argumentos como os usados inicialmente por médicos sem qualificação científica, como o de que a República Checa, com uso geral de máscara, tinha no auge da primeira onda metade dos casos de Portugal. Claro que é um argumento falacioso, isolando um único fator do conjunto de medidas. Era como se se dissesse que a Grécia também, por os gregos serem grandes consumidores de azeite, esquecendo que os super-atingidos Espanha e Itália também o são. Ou, menos caricaturalmente, valorizar a vacinação com BCG, como se fez, por correlações não obrigatoriamente significando causalidade e sem estudos controlados.

Os estudos conhecidos, para além dos que se referem à gripe, são principalmente de dois tipos: os que abordam a permeabilidade ao vírus e os baseados em modelos de simulação. Estes últimos são inconclusivos, com resultados de redução de risco que variam entre 6 e 80%.

Os muitos estudos sobre a retenção de vírus pelas máscaras também mostram resultados muito variados e pecam por serem obtidos em condições experimentais dificilmente transponíveis para a realidade. A retenção de partículas geradas por sopros artificiais não é uma situação natural e mede principalmente as características do tecido ou outro material, não a da máscara concreta, aplicada a faces concretas.

As máscaras não são todas iguais e, para cada tipo, há certificações diferentes, sendo praticamente impossível certificar todas as máscaras comerciais em uso. Como é sabido, há três tipos de máscara: os ventiladores de tipo N95/FFP2, usados só nos hospitais e outras situações como equipamento individual de proteção do pessoal de saúde; as máscaras cirúrgicas; e as máscaras de tecido, industriais ou artesanais. São casos diferentes que devem ser tratados diferentemente. Por exemplo, as máscaras de algodão, variando com o tipo de tecido, têm menos 30 a 50% de eficácia de retenção do que as máscaras cirúrgicas, uma variação considerável.

Também é preciso distinguir os dois tipos de retenção: de partículas expelidas e de partículas inaladas. Na prática, isto significa que é diferente o valor do uso de máscara como elemento de proteção social, populacional, ou como elemento de proteção individual de pessoas não infetadas. Não há dúvida de que a máscara é importante para reduzir o risco de um assintomático transmitir a infeção, mas isto tem de ser pesado com a probabilidade de tal pessoa estar em circulação e em que local ou circunstâncias. Já quanto à capacidade de prevenção da aquisição da infeção por pessoas não infetadas, os dados objetivos levantam muitas dúvidas. Pesadas ambas as situações, há que decidir em que circunstâncias é que o primeiro caso representa um risco considerável e em que medidas concretas isto se deve traduzir.

É importante também não isolar o uso da máscara de outras medidas e enquadrá-lo nas circunstâncias específicas. Veja-se o caso dos países escandinavos, onde o uso da máscara é muito reduzido, quase que só nos transportes públicos. Não falo só da Suécia, mas também dos outros três, que, quando a segunda onda já atinge grande parte da Europa, continuam com um número muito baixo e controlado de novos casos. A Suécia, como se sabe é um caso particular. Continua a ser muito criticada pela elevada mortalidade inicial, mas que não decorreu diretamente da estratégia adotada de autoconfinamento moderado. A mortalidade, devida à forma como ocorreram e foram tratadas as infeções nos lares, já foi corrigida. Se virmos os dados depois disso, por exemplo a partir de julho, verificamos que o número de mortes diário é de cerca de 6 e a letalidade baixou para 3%, contra os 8% de fim de junho. Dito isto, a não recomendação do uso de máscara nos países escandinavos deve ser avaliada em termos também do cumprimento da distância física, da proibição de ajuntamentos e da redução efetiva dos contactos sociais, em geral.

Por outro lado, há uso e uso de máscara. Contas por alto e da minha avaliação empírica na minha zona – uma zona socialmente média ou média-alta – estimo em mais de 70% a percentagem de pessoas que usam máscara na rua, sem se cruzarem com ninguém ou a passearem o cão. Agora menos, mas até via pessoas com máscara e viseira. Assim, poderia dizer-se que não causaria grande perturbação a obrigatoriedade de uso de máscara mesmo em espaços abertos, apesar do desconforto e até, em alguns casos, de dificuldade respiratória ou de comunicação. No entanto, também é significativa a percentagem de pessoas que observo a não utilizarem devidamente a máscara, o que pode trazer efeitos perversos.

Duvido também da segurança pessoal – com reflexos sociais – com que ela é usada ou tratada. Quantas pessoas não estarão a usar prolongadamente a mesma máscara cirúrgica? Diz-me um farmacêutico ter a impressão (fiquemos pela impressão) de que a venda de máscaras descartáveis não está em proporção ao seu uso. E quantas vezes vejo retirarem a máscara, pegarem nela de qualquer maneira e pô-la no bolso? E quantas vezes lavam, e como, as máscaras de tecido?

Mais importante do que tudo isto, como efeito perigoso da obrigatoriedade do uso generalizado de máscara, é o risco real do sentimento falso de segurança, com a tendência para relaxamento de outras precauções, estas sim indubitavelmente importantes – o distanciamento físico, a lavagem frequente das mãos e a etiqueta respiratória.

Concluindo, em termos práticos e na minha modesta opinião:

O uso de máscara deve ser obrigatório em espaços fechados, muito em particular nos transportes, como está em vigor.

Em espaço aberto, e como medida de precaução talvez exagerada mas logicamente admissível, pode justificar-se o seu uso em circunstâncias particulares:
— em zonas, bairros ou freguesias com alta incidência de novos casos.
— em circunstâncias em que não é possível assegurar a distância mínima, por exemplo manifestações, feiras, mercados ao ar livre, áreas de grande concentração de turistas ou passeantes, zonas de deixar ou receber crianças das escolas, etc. ou mais geralmente, em qualquer caso em que, num espaço aberto, haja ocupação superior a 15 pessoas por 10 m2 (distância entre elas de cerca de 1,6 m) e durante mais de 15 minutos.

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