Há qualquer coisa estranha que ainda não estamos a ver, a matéria negra como chamou Karl Friston, que ele detetou com o seu modelo dinâmico bayesiano, que me parece mais potente e realista do que os tradicionais SIR. Uma hipótese plausível é que haja alguma imunidade prévia na população, a explicar a relativa facilidade com que se tem contido a pandemia em muitos países, em especial na Ásia e na Europa.
Só tenho estudado bem a situação europeia, em que a dinâmica da epidemia levanta muitos problemas, com disparidades nacionais e regionais difíceis de explicar. Têm-se adiantado muitas explicações parcelares (diferenças nos lockdowns e tempo a que foram decididos, diferenças de sistema de notificação, diferenças no número de testes feitos) mas não me convencem, globalmente.
Os dados serológicos já conhecidos indicam seroprevalências geralmente muito baixas, sempre abaixo dos 10%, o que não é muito animador em relação à aquisição da imunidade de grupo. No entanto, os testes usados são específicos para o SARS-CoV-2 e nada dizem sobre a hipótese de outros tipos de imunidade, nomeadamente em relação a outros coronavírus. Tentei estudar o que se sabe sobre imunologia dos coronavírus endémicos, mas é difícil. Nunca mereceram muita atenção e só há estudos dispersos. Nem sequer há estudos serológicos populacionais consistentes.
Cada vez mais há gente a postular alguma imunidade cruzada para explicar o que parece ser algum nível de resistência à infeção, o R0 muito mais baixo do que a maioria dos vírus respiratórios e a alta percentagem de assintomáticos (verdadeiros, não falo dos pressintomáticos). Estudar o estado imunológico desses assintomáticos em relação aos coronavírus endémicos (OC43, HKU1, 229E e NL63) parece-me importante. Há vários casos a considerar:
1. Antigénio comum de grupo. Os coronavírus partilham um antigénio de grupo, a proteína N, a que está ligada ao RNA. Mas não há nenhum estudo sobre a possibilidade de os anticorpos anti-N serem neutralizantes. Sendo uma proteína interna, não envolvida na adsorção do vírus, a presunção lógica é de que esses anticorpos não serão protetores.
Além disto, parece-me difícil o estudo experimental porque os infetados com SARS-CoV-2 também terão anticorpos contra esse antigénio de grupo e será difícil fazer o tratamento estatístico disso — mas não sou especialista.
2. Imunidade inata. Não confundir com imunidade herdada materna. É a primeira barreira, primitiva e inespecífica contra vírus, principalmente de RNA. No início da infeção são produzidos pequenos RNA virais que induzem a síntese de inteferon beta. Pode-se pôr a hipótese de diferenças individuais ou genéticas, porque há vários genes envolvidos na síntese de interferão.
No caso do SARS-coV-2 há dois artigos publicados, com indicações contraditórias. Num, mostra-se que este vírus tem um gene para uma proteína não estrutural, ORF3b, que é truncado em relação aos outros genomas de coronavírus e que, possivelmente por isto, bloqueia a produção de interferão. O outro artigo, pelo contrário, mostra que a expressão do genoma do vírus vai em paralelo com um aumento da expressão dos genes envolvidos na síntese de interferão.
3. Imunidade cruzada. Não é o mesmo que imunidade comum contra o antigénio de grupo e pode ser mais fácil de estudar, desde que se disponha de testes para os quatro corona endémicos. É curioso que ainda não se tenha estudado isto, virologicamente, em testes de neutralização. Talvez por não haver anticorpos monoclonais suficientemente bem caracterizados para os endémicos. Só há evidência indireta, por estudo de células T CD4+. Já há mais do que um artigo mostrando que mesmo indivíduos nunca expostos ao SARS-CoV-2 têm células CD4+ circulantes que reconhecem epítopos de vários antigénios virais, incluindo a proteína S, de ligação às células. O que não se testou foi se essas células T também reconhecem epítopos de outros corona.
4. Imunidade celular. Os mesmos artigos também mostram que há células T CD8+ citolíticas para as células infetadas. Sabe-se que, em outros vírus, o ataque precoce às células infetadas, mais do que a neutralização do vírus por anticorpos, pode ser uma resposta imune muito eficaz, quebrando a cadeia de transmissão célula a célula. Novamente, poderá eventualmente haver aqui imunidade cruzada com os outros corona.