Escrevi numa nota de Facebook que , no desconfinamento, “vamos todos ser suecos, com particularidades sociais e culturais de cada país. E sem o espantalho da taxa de letalidade sueca, acidental nos lares de idosos, que já está a ser controlada, com descida notória.”
Reações a esta nota motivaram-me a escrita de nova nota, extensa, procurando dar dados objetivos sobre uma situação que tem sido alvo de muita desinformação. Transcrevo-a, para memória futura.
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Comentou João Carlos Graça: “Tanto quanto sei, o ‘modelo sueco’, inspirado em particular pelo Johan Giesecke, é de ‘live and let die…’” Não, de todo. Lamentavelmente, mas era de esperar neste nó imbricado de relações entre política e ciência na pandemia, a estratégia sueca tem sido caluniada, acusada de irresponsável, deturpada na sua lógica e objetivos. Compreende-se, por razões políticas e psicológicas. Em contrapartida, não se leem críticas na imprensa científica, embora a atitude geral seja, nesta fase, ainda de ir vendo com interesse para analisar depois, quando se fechar o ciclo completo da pandemia. É a que pretendo ter, o que passa por me/vos defender de apreciações não científicas e não objetivas.
Temos os casos, talvez menos frequentes, dos admiradores fervorosos dos regimes autoritários asiáticos (não só a China; também a Coreia do Sul. e Singapura) para quem a estratégia chinesa é um dogma, apesar de adotada sem grande racionalidade, quando ainda não havia o conhecimento científico que há hoje. Também quando os chineses se basearam apenas na experiência que tinham do SARS de 2003, afinal completamente diferente da COVID-19, pese embora os agentes serem ambos coronavírus.
Depois, todos os governos europeus que a adotaram tiveram, de certa forma, de alinhar pelo dogma, de que aquele tipo de bloqueio, “lockdown”, confinamento, seja o que lhe quiserem chamar, era absolutamente indispensável, naquele catálogo completo de medidas. Julgo que, politicamente, não era de esperar outra posição, por precaução, mas agora estão presos e não podem admitir que talvez houvesse alternativa. Da mesma forma, a comunicação social que alimentou um clima de medo (rentável, como são rentáveis os crimes e desgraças de tabloides) fortaleceu o mesmo “não há alternativa”. Curiosamente, como não houve desde logo uma estratégia de desconfinamentio pensada simultaneamente para o bloqueio que teria de ser levantado mais cedo ou mais tarde (e as pressões foram para que tivesse sido agora mais cedo), a atitude está a mudar. Vai ter de se aceitar que se pode controlar a epidemia com medidas mais suaves e já se começa a insinuar que, agora, a experiência sueca nos pode dar lições.
Psicologicamente, também é compreensível que muitas pessoas, confinadas, preocupadas e mesmo com medo, entrassem numa forma de negação em relação ao que desafiasse o consenso. Mas, por outro lado, o aproveitamento desonesto e totalmente abusivo feito pelos negacionistas também dificulta a discussão séria deste assunto.
Há alguns mitos que é necessário desfazer.
1. Que a estratégia sueca foi uma leviandade aventureira, contra a evidência científica. Quanto à evidência científica dos bloqueios, já vimos e discutirei depois. E a Suécia tem das melhores escolas de epidemiologia do mundo, tendo a sua estratégia sido baseada em repetidas simulações por modelos, disponíveis online (em sueco, mas valha o Google Translator).
2. Que a estratégia sueca visa a aquisição de imunidade de grupo, independentemente das mortes. Não é verdade. A estratégia sueca procura compatibilizar três objetivos: proteger os membros dos grupos de risco, garantir o não colapso do sistema de saúde, e minimizar os custos sociais e económicos. Os responsáveis repetem sempre que a imunidade de grupo é um produto lateral benéfico desta estratégia mas que não é o principal objetivo. Pode-se permitir o alastramento controlado da doença diminuindo ao mesmo tempo a sua letalidade, por proteção das pessoas em risco. De qualquer forma, acaba por valer o resultado esperado de aquisição de imunidade de grupo na província de Estocolmo no fim de maio ou em junho, a defender de uma segunda onda.
3. Que a estratégia de bloqueio e não a sueca é a que garante o achatamento da curva. É falso. Pelo contrário, só a epidemia sueca (e parcialmente a holandesa) é que mostra esse achatamento. Os bloqueios resultaram foi em contração da curva. Pode parecer um preciosismo mas tem consequências em termos de uma muito provável segunda onda e da diferença de imunidade para a defrontar.
4. Que a elevada letalidade na Suécia é consequência da estratégia. A estratégia de combate à epidemia tem consequências no número de infetados e logo no número de mortos, que é uma percentagem relativamente fixa, grosso modo, do número de infetados. Mas a estratégia não tem um efeito específico, independente, no número de mortes. O que se passou na Suécia foi uma falha, reconhecida oficialmente, na proteção dos lares de idosos, o que já está a ser corrigido com tradução nos números. Além disto, a contagem das mortes não faz sentido nesta fase, quando ainda não se sabe o que será a gravidade de uma segunda onda, para a qual tudo indica que a Suécia está muito melhor preparada.
5. Que a Suécia não adoptou nenhuma medida de combate à epidemia. Não é verdade. O que elas são é muito menos rigorosas do que as que nós e a generalidade dos europeus adotámos. Há distanciamento físico, há muito teletrabalho, são proibidas reuniões de mais do que 50 pessoas, estão encerradas as universidades, etc.
6. Que Johan Giesecke afirmou que a COVID-19 era uma “gripezinha”. O que disse é que os dados de prevalência e a estimativa cada vez maior da percentagem de assintomáticos vão fazer baixar a letalidade dos 3% iniciais, em média, para cerca de 0,1%, mesmo assim duas ou três vezes superior à da gripe; e que a doença é muito mais grave para o grupo etário de risco. De forma alguma minimizou a importância da pandemia.
Mais, mas já não cabe mais neste já longo post. Fica para o tal artigo. Mas não sem lembrar que alguns destes desmentidos desses mitos foram já feitos em conferência de imprensa da OMS (29 de abril, minuto 41.07 da conferência), que considera a experiência sueca merecedora de muita atenção.
Uma nota importante final. Não se depreenda desta nota que eu defendo a estratégia sueca e que nego a europeia convencional, à chinesa. Não sei nem ninguém sabe ainda qual é a mais adequada e, até, se é generalizável. Mas não poder defender, por falta ainda de dados, não pode significar menosprezá-la ou qualificá-la desde já como negativa. O que aqui fica é apenas para ajudar à reflexão e ao acompanhamento da evolução, que certamente durará muitos meses. No fim é que se verá.
Como escrevi no Facebook, desde o início que simpatizei com as tentativa da imunidade de grupo, que ao que parece, terá sido a estratégia sueca (na GB correu mal), no entanto, culturalmente a português parece se enquadrar melhor: somos mais sentimentalismos em relação à morte, daí, a estratégia dos países nórdicos,especialmente a Suécia.
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E não só. Somos também muito diferentes nos condicionalismos sociais e culturais que justificam a estratégia sueca. Não creio que ela fosse possível em Portugal. Até no RU não correu bem. Mas anote-se que o RU não adotou nem sequer as medidas suaves suecas, antes do relatório do Imperial College ter feito o governo Johnson guinar 180º.
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