Os mortos e os vivos

Com o ar mais natural do mundo, perguntou-me o canalizador que tive de chamar: “vai haver para aí 2000 mortos, não acha?”. Claro que não acho nem deixo de achar, porque ninguém pode fazer ideia desse valor. Podemos ter alguma estimativa para a primeira fase, em que a curva de casos se está a definir melhor, mas ninguém sabe o que o futuro nos reserva.

Mas fiquei a pensar nessa aparente ligeireza com que ele falava de mortes. Há um mês, quando cresceu subitamente o foco epidémico em Portugal e depois se tomaram medidas, o número de mortes era o centro das atenções. O número de casos só interessava aos epidemiologistas. É natural e vai ao encontro do terror milenar que ainda hoje inspiram as epidemias, associadas a números de mortes pavorosos, mesmo de milhões, como na peste e na espanhola. Números são uma abstração para o homem comum, mas morte é a do seu vizinho, do seu parente, potencialmente dele próprio. Já aqui referi a analogia com as baixas numa guerra. São só isso, baixas, para o general no estado maior na retaguarda, mas são mortos, os seus homens, para o capitão na linha da frente.

Era esta também a base da preocupação com o achatamento da curva, a impedir o colapso do sistema hospitalar. A necessidade de hospitalização significava, indiretamente, a necessidade de evitar mortes. Da mesma forma, seguia-se com preocupação, em relação a outros países, a taxa de letalidade mais do que a taxa de expansão da epidemia. Invejava-se a Alemanha, criticava-se a permissividade sueca, com consequência (não demonstrada) na mortalidade.

Parece indiscutível que foi esta preocupação que norteou a adoção da estratégia de distanciamento social. Com grande apoio da opinião pública, e na falta de estudos de impactos previsíveis, teve de se adotar a atitude de “nada é demais para evitar mortes”. E com efeitos certamente muito para além do que se podia esperar, estando hoje a nossa disponibilidade de camas de cuidados intensivos ocupada a 54%, mas dos quais só cerca de metade são doentes com COVID-9.

Entretanto, a visão mais desapaixonada das mortes já fazia caminho, com pretensão de racionalidade. Que a letalidade não seria superior à da gripe sazonal e mesmo à da gripe pandémica de 2009. Que muitos dos mortos, dada a sua idade e a esperança média de vida, morreram só uns meses mais cedo do que morreriam de qualquer forma.

Há um mês atrás, estas afirmações, que até podem ter alguma base de verdade (embora seja muito cedo ainda para podermos comparar a letalidade da COVID-19 com outras), seriam rejeitadas pela grande maioria das pessoas. Hoje, parece-me já não suscitarem tanta indignação, justificada afetivamente.

Por exemplo, noticia-se (admito que talvez incorretamente) que um dos interruptores de segurança nesta segunda fase, de alívio das medidas, será o atingir-se o número de 4000 hospitalizados, simultaneamente. Mas não vejo tirar-se daí a consequência inevitável, em número de mortes. Em média, as hospitalizações em Portugal resultam na taxa impressionante de 40% de morte. 4000 hospitalizados (felizmente ainda nunca tivemos mais de 1300, a cada momento) significam 1600 mortos, uma vez e meia o total atual.

Esta habituação à ideia de que é inevitável a morte de muitos, a par do cansaço com a situação que se está a viver, mais a imposição mediática de outras prioridades, políticas e económicas, vai levar a uma certa banalização da morte?

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