Era de esperar que o pavor milenarista de uma pandemia a coronavírus, a COVID-19, viesse acompanhada de variadas teorias da conspiração, a começar pela de uma origem laboratorial, secreta, do vírus, num sempre renovado mito frankensteiniano.
O novo coronavírus, mais precisamente o SARS-CoV-2, é uma criação humana? Claro que sim, de certa forma, devido à perturbação ecológica dos hábitos alimentares dos reservatórios (morcegos) e ao acrescido contacto de pessoas com animais vivos, em mercados superlotados. Também o Ebola e o HIV tiveram a ver com a desflorestação e as doença tropicais aparecidas nas regiões temperadas têm a ver com a globalização das viagens e do transporte de mercadorias — por exemplo, pneus velhos com humidade que são viveiros de larvas de insetos infetados.
Mas criação laboratorial, voluntária? Ninguém pode dizer nunca, a não ser em relação ao Sol orbitar a Terra. Mas é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha.
Os vírus são um sistema biológico em muitos aspeto bizarro, se comparados com os organismos. Numa fase da sua existência, são inertes, apenas um genoma, isto é, o material genético informativo, revestido por uma cápsula protetora. Quando penetram numa célula adequada, despem-se, expõem o seu genoma e obrigam a célula a reproduzi-lo e a expressá-lo (parasitismo genético), já que não possuem formas autónomas de procederem a biossínteses ou produção de energia.
A relação entre vírus e hospedeiro é muito estrita a dois níveis. Primeiro, é necessário que encontrem células (e, portanto, organismos) quer apresentem na sua superfície proteínas ou outras macromoléculas a que o vírus se possa ligar, iniciando assim o processo da sua “deglutição” pela célula e, logo, a infeção. Em alguns casos, como a poliomielite, a maioria das infeções respiratórias altas ou a hepatite A (todos vírus da mesma família), esses recetores celulares são só humanos. Noutros casos, há recetores partilhadas na evolução por várias espécies, cruzando-se a chamada barreira de espécie. Acontece com os coronavírus, que passam dos morcegos a outros animais – nomeadamente animais vivos à venda em mercados – e destes para o homem.
Depois, já no processo de infeção, é preciso que a célula infetada seja capaz de fabricar muitas novas cópias do genoma viral e também as moléculas de novas cápsulas protetoras do vírus, para este ser lançado de novo à sua fase extracelular (aérea, nas fezes, nas águas ou esgotos, nas secreções, etc.), até infetar novos hospedeiros.
Isto exige um processo muito fino e mutuamente ajustado de evolução conjunta entre vírus e hospedeiros. É mais um prodígio da natureza e muito afinado. Teleologicamente, é necessário garantir um grau exato de infeciosidade (o termo correto é virulência). Se um vírus matar muito, suicida-se como espécie, por deixar de ter terreno fértil. É assim que, com um vírus novo, se assiste normalmente ao ajustamento da sua virulência inicial, como aconteceu, por exemplo, com o HIV. O vírus criança é estouvado, mas adquire sensatez com a idade…
Quer isto dizer que os vírus não podem evoluir independentemente – ou independentemente na aparência – do hospedeiro? Claro que sim, até para conseguirem escapar (releve-se o antropomorfismo do termo) às defesas imunes do hospedeiro ou ao uso de medicamentos antivirais (como se sabe, não são antibióticos!). Então essa variação, eventualmente com novos graus de virulência, não poderá ser reproduzida laboratorialmente?
A variação genética dos vírus ocorre por dois processos: mutação ou rearranjo genético. Este último é um caso particular que só ocorre quando o vírus possui um genoma segmentado, como o vírus da gripe. Então, se uma célula for infetada por duas partículas virais, de tipos diferentes (até de espécies diferentes, como vírus de homem e de porco), pode encapsular – isto é, introduzir na tal “cápsula” – uma mistura de segmentos – por analogia, “cromossomas” – de um e outro vírus. É como nós: somos feitos de uma mistura de cromossomas do nosso pai e da nossa mãe.
No caso dos coronavírus, o seu genoma é uma molécula única de RNA (ao contrário dos organismos, o genoma viral tanto pode ser composto de DNA como, mais vulgarmente, de RNA). A sua variabilidade genética ocorre por mutação.
As mutações podem ser induzidas, por meios físicos ou químicos, mas isto é um processo aleatório em que não se sabe o efeito da mutação na infeciosidade ou na escolha do hospedeiro, por exemplo. Noutros casos, podemos usar um método de seleção de mutantes para um efeito desejado. No laboratório, é uma operação vulgar, de que tenho muita experiência, mas de quase impossível transposição das culturas celulares para o organismo vivo a infetar (a menos que se fizesse experimentação com humanos, o que talvez caiba no raciocínio dos adeptos da conspiração).
Que efeito se poderia pretender com uma mutação produzida em laboratório no caso de um coronavírus? Obviamente, torná-lo infecioso para o homem, como um vírus novo. A questão é que todos os coronavírus do morcego já são naturalmente infecciosos para o homem, por as duas espécies partilharem o recetor viral.
A alteração genética também pode ser conseguida por dois processos. O mais moderno, CRISPR-Cas9, permite a edição de genes, de DNA mas não de RNA, como é o genoma dos coronavírus. Os processos tradicionais de engenharia genética podem teoricamente contribuir para o “fabrico” de novos vírus, mas têm um problema “policial”: deixam sempre marcas de fabrico, o que não se observou ao sequenciar-se o genoma deste novo vírus.
Finalmente, o que nos diz a filogenética? Podemos comparar as sequências genéticas de organismos ou vírus e construir árvores de relação entre elas. Um ancestral ramifica-se, cada um dos ramos depois, e por aí fora. Assim, por exemplo, temos a árvore dos primatas ou, ampliando uma zona mais pequena, a dos hominídeos. Há um relógio evolutivo que ressalta dessas árvores, e uma sequência coerente de ramificações. Podemos, por exemplo, para certas características (não confundir com raças), situar na árvore diversas etnias. O que não poderíamos colocar num conjunto coerente de ramificações seria um homem com três olhos. Da mesma forma, observa-se que a sequência genómica do SARS-CoV-2 o coloca indubitavelmente numa variação natural dos genomas virais da família e de forma alguma num ramo espúrio, de três olhos, da árvore (filo)genética dos coronavírus.
Ciência é ciência, conspiração é ficção.