A eleição de Jeremy Corbyn para líder do Partido Trabalhista (Labour) foi vista por muitos como significando a morte do blairismo e o fim da deriva conservadora e neoliberal do trabalhista inglês. Como ocorre muitas vezes, “a notícia dessa morte foi manifestamente exagerada”. A andorinha Corbyn parecia anunciar uma primavera política, mas uma andorinha não faz a primavera.
O descalabro eleitoral do Labour não parece dever-se ao seu programa eleitoral de esquerda nem, como defendido pelos analistas personalistas, ao carácter ou imagem de Corbyn. Muitos inquéritos de opinião revelam uma confortável maioria de apoiantes das medidas socialistas propostas por Corbyn e pela ala esquerda do Labour: nacionalizações, criação de 100000 novas habitações sociais, reforço do SNS, criação de uma internet gratuita para todos, cuidados gratuitos para os idosos, abolição das propinas universitárias, etc. O erro tático deve ter sido o de pensar que a discussão sobre uma política progressista iria fazer desviar o centro d extensões do Brexit.
Em primeiro lugar, é óbvio que, nestes últimos dois anos, a vida política britânica tem estado quase absorvida pela saga do brexit. Dificilmente ele não seria o centro da campanha, tanto mais que isto interessava sobremaneira a Boris Johnson. Em segundo lugar, o brexit é, de facto, a pedra de toque de toda a política atual. O peso do factor brexit é bem demonstrado pela forte correlação local entre as perdas eleitorais do Labour e as circunscrições trabalhistas em que o brexit ganhou o referendo de 2016.
Em 2017, a questão do brexit ainda não tinha assumido as atuais dimensões e o Labour conseguiu uma boa posição, com os conservadores sem maioria absoluta, somente, como agora tentou, pela defesa de uma outra política em relação ao austeritarismo que ainda se vivia. O manifesto eleitoral, “For the many not the few”, reconheceu o estado de ira popular e apelou a ela para um movimento (o “Momentum”) em favor de uma transformação económica profunda
Porque não resultou agora? O descontentamento com a situação política e económica é o mesmo, senão mesmo muito maior. Simplesmente, foi agora transposto para o brexit e o Labor, Corbyn em particular, enredaram-se em ambiguidades e tensões internas que lhes retirou credibilidade. As alas “leave” e “maintain” equilibravam-se e coexistiam mesmo na direção do partido e até no círculo mais próximo de Corbyn. Sair ou não sair? União aduaneira ou não? Segundo referendo ou não? O Labour andou sempre a vacilar e Corbyn acabou por ser o retrato dessa indecisão.
Mais ainda, não conseguiram convencer o eleitorado, nem sequer insistiram muito nesse ponto, de que não há só um brexit. Há que distinguir um brexit negociado e um brexit duro. E, principalmente, há que distinguir um brexit de esquerda, a favor das classe populares, do mundo do trabalho, e um brexit de direita, segundo os interesses do grande capital. O Labor, nas múltiplas votações sobre os acordos May e depois Johnson, nunca me conheceu de que estava a deixar clara essa distinção.
Há certamente diversas razões para a vontade popular maioritária de abandonar a UE, algumas delas estreitamente interligadas. Mas certamente uma das principais é a de ser uma forma de resposta e protesto de camadas trabalhadoras negligenciadas, em particular de operários de zonas industriais em depressão. Estes eleitores não se sentem representados pelos elementos de classe média (se é que há UMA classe média) e da intelectualidade que continuam a influenciar largamente o aparelho do Labor.
Não se pode negar que haja aspetos parcelares negativos no apoio ao brexit, nomeadamente um provável sentimento anti-imigração. É verdade que esse sentimento e o justo protesto contra o desemprego e a baixa de rendimentos de trabalho nas áreas industriais tradicionais, destruídas pelo “novo capitalismo” financeiro e dos serviços, andam frequentemente a par, o que é revelado pela captação pela Frente Popular francesa de votantes ex-comunistas ou pela vitória de Trump em largos setores do operariado americano.
É muito provável que grande parte dos eleitores populares favoráveis ao brexit vejam como inimigo mais facilmente identificável a UE, mais do que os próprios grandes negócios do país. Veem o poder da burocracia europeia, veem o consenso político-económico asfixiante, veem o domínio alemão ( dos que perderam duas guerras face ao Reino Unido).
Depois da implosão do mundo do “socialismo real”, a social-democracia teve uma janela de oportunidade que não soube aproveitar. Não soube é talvez desculpa imerecida, porque entretanto já tinha enveredado por um caminho quase sem retorno de social-liberalismo, de conciliação com o neoliberalismo.
Corbyn foi um exemplo único (porque falamos de social-democracia, excluindo assim o Syriza, o Podemos ou o BE como “novas esquerdas”) de tentativa de retorno aos fundamentos da social-democracia, ao “espírito de 45”, como o título do filme de Ken Loach.
Acabou por falhar por culpa da questão europeia, afinal a grande constrição a qualquer mudança desse tipo. “Europeismo de esquerda”, como pretendem os verdes europeus e o seu companheiro português, o Livre, é uma ilusão perigosa. Onde ainda valem os mecanismos democráticos para que as classes trabalhadoras possam exercer a vontade ou a pressão é a nível nacional. Que milagre permitiria a necessária unanimidade de 28 governos para uma revisão democrática e progressista dos tratados, quando a experiência até prova que, quando um referendo nacional se opõe ao consenso de Bruxelas, força-se nova e nova consulta até ao resultado desejado.
A meu ver, e de muita gente, o terreno privilegiado de luta, hoje, ainda é o nacional. O internacional está completamente armadilhado. E invocar internacionalismos d esquerda fora do quadro prático, ou cosmopolitismos alegadamente contrários ao soberanizo popular, a pretexto da construção fantasista de um “povo” europeu, é coisa de políticos lunáticos (para não os acusar de desonestidade).
O europeismo do social-liberalismo tem conduzido os partidos social-democratas ao desastre, mesmo que, no curto prazo, como no caso português, pareçam ter sucesso. Pode agora haver a tentação do Labour inverter a marcha, errando nas causas deste recente descalabro. Pode voltar ao blairismo e à conciliação de interesses. Pode ganhar a sua ala intelectual-urbana, na onda do pós-modernismo político que tem dado cartas desde a década de 70. O que não pode é continuar a alienar o seu eleitorado das classes trabalhadoras, das vítimas da desindustrializção causada pela financeirização e pela globalização.
E é uma lição para irmos tendo em conta em Portugal, mais tarde ou mais cedo. O socialismo da classe média ainda está por inventar.
NOTA – igualmente muito importantes nestas eleições foram os resultados do SNP na Escócia e do Sinn Fein na Irlanda do Norte. Caminho mais aberto às secessões?