A minha culinária é um tripé: cozinha de autor, cozinha de família e cozinha tradicional (com relevo para a açoriana). Hoje, e em mais algumas notas, vou falar da minha herança familiar, escassa em bens mas rica em tradições, estórias, convívios, receitas de família. Estas dividem-se em três grupos. Primeiro os pratos do dia a dia, regionais ou correspondentes, em boa medida, à cozinha urbana de todo o país, muita da qual hoje em desuso.
Outro grupo, o das criações recentes, em boa parte devidas à minha avó materna, muito criativa e curiosa em cozinha, com destaque para o que toca a doces, alguns dos quais ainda hoje vendidos como especialidades nas pastelarias da sua Angra do Heroísmo.
Finalmente, o “património”, com algumas gerações, e tão invulgar que nunca vi tais receitas em outras casas. Em alguns casos sabemos quem a criou, essa bisavó ou aquela tia velha, mas outras são mistério.
Mistério interessante, porque a generalidade dessas receitas, ricas e por isso geralmente de jantar de festa, são de clara influência de alta cozinha, ao estilo francês que dominava os nossos restaurantes de hotel (que não existiam nos Açores). Uma hipótese plausível que ponho é a de um meu trisavô, que vinha com alguma frequência a Lisboa, levar de regresso, para além dos vestidos para mulher, filhas e netas – como me garantia a minha avó – também algumas receitas arranjadas no hotel.
Hoje descrevo duas, bastante invulgares, que ainda há dias fiz. Sendo já minha propriedade, e enriquecendo o “capital”, muitas vezes lhes dou um toque de personalização ou aperfeiçoamento técnico. Aqui, deixo as versões originais, registadas no livro d receitas da minha mãe.
Canja rica
Miúdos, patas e pescoço de uma galinha grande, eventualmente com alguma carne, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 3 gemas de ovos, meio limão, 1 dl de leite, sal, pimenta preta, 4 grãos de pimenta da Jamaica, 1 ramo de salsa, tomilho, maizena q. b., 50 g de massa de pérola (sagu).
Cozer em água os miúdos da galinha com as cebolas cortadas grosso, o alho pisado mantendo a película rosada e os temperos. Coar, misturar um fígado esmagado e voltar a coar. Arrefecer, indo ao frigorífico até a gordura ficar bem à superfície. Desengordurar. Bater as gemas com o sumo de limão, o leite e a maizena ou farinha. Juntar à sopa um pouco arrefecida, voltar ao lume mexendo sempre e engrossar, a lume baixo, sem deixar talhar as gemas.
Entretanto, inchar a massa pérola em água abundante durante mínimo de 30 min ou até inchar e cozer (juntar a massa com a água já a ferver), até as pérolas estarem transparentes mas não amolecidas demais, cerca de 30 minutos. Coar e passar por água fria. Juntar à sopa só à última hora.
Peixe assado com nozes e azeitonas
Para 4 pessoas. 1 bicuda grande (2 kg), 4 c. sopa de azeite, 4 c. sopa de vinagre, 4 c. sopa de banha, 1,5 c. sopa de farinha, 2,75 dl de caldo de peixe, 60 g de miolo nozes, 150 g de azeitonas pretas, sal e pimenta, salsa e estragão.
Untar uma assadeira com azeite e colocar o peixe, às postas grossas. Cobrir com o molho, feito com o azeite, o vinagre, a banha, a farinha diluída no caldo de peixe, tudo bem misturado, mais o miolo das nozes esmagado grosso e as azeitonas. Assar a 180º, 30-40 minutos, regando com frequência o peixe com o molho misturado à colher.
Servir coberto com o molho apurado, com uma guarnição a gosto (tradicionalmente, na família, batatas salteadas ou puré de batata).
Nota – a bicuda, que nunca vi no continente, é um peixe do Atlântico Norte (mar alto) aparentado com a barracuda, mas bastante mais pequeno e com sabor mais elegante. A sua designação científica é Sphyraena viridensis. Na falta da bicuda, costumo usar garoupa ou, menos frequentemente, corvina.