Indo à origem (I)

Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. É o mesmo com receitas que entram no uso comum, nomeadamente nos restaurantes menos exigentes e para um público menos exigentes.. Não posso pretender que todos sejam astronomicamente eruditos, que conheçam as receitas genuínas originais. Também se deve ter em conta que a generalização é propensa a inovações e que, em boa parte, assim progrediu a cozinha. Mas palpita-me que muitos cozinheiros amadores gostarão de se dar ao prazer de experimentar pratos tradicionais ou entrados nos usos comuns na sua versão correta (em termos da criação).

Há toda uma série de pratos que facilmente se reconhece que podem variar muito, com a mesma designação, de restaurante para restaurante, de casa para casa. No caso de restaurantes, é um problema para o turista que, muitas vezes, quer conhecer o verdadeiramente tradicional. Mas provavelmente isto também me acontece no estrangeiro, não ter a certeza da genuinidade do que experimentei. No entanto, corro menor risco, porque posso comparar com uma coisa obrigatória de regresso de viagem, um livro que amigos locais conhecedores me garantem como d boa cozinha.

É diferente o caso dos pratos de “ao estilo…”. Ceviches, pokés, shop suey, massas, saladas, coisas à Brás, salgados, estou sempre a variar e a puxar pela imaginação.

No caso da cozinha portuguesa, vem-me logo à cabeça modificações frequentes, por vezes inócuas, outras desvirtuaras. raramente, por exemplo, me servem as versões genuínas de bacalhau à Gomes de Sá, de bacalhau à lagareiro, de bacalhau espiritual (à Cozinha Velha), de carne de porco com amêijoas, até de de salada russa. Mesmo as simples amêijoas à Bulhão Pato já vêm frequentemente com mostarda e/ou piri-piri.

Hoje vou falar de dois exemplos de pratos “à” transformados em pratos “com”: bifes à café e costeletas com molho salsicheiro.

Sou comedor e cozinheiro apreciador de bifes, não fosse eu açoriano, terra de grande carne. Na minha casa de criança comiam-se de cebolada – coisa esquecida na nossa restauração –, com natas de forma muito semelhante ao bife à Marrare – outra preciosidade esquecida – e, principalmente, à maneira micaelense tradicional, com alho e malagueta. Em Lisboa, entrei na grande oferta de bifes à café, hoje reduzida. 

O bife à café foi uma inovação dos cafés de Lisboa em relação ao bife tradicional, mais simples, da tabernas. Essencialmente, o molho É feito juntando à gordura de fritar (hoje vulgarmente gordura à parte, por o bife ser grelhado) leite, fécula de batata ou farinha (frequentemente demasiado, com o molho a ficar demasiadamente grosso, de que para mim é mau exemplo o Relento), mostarda e limão.

Há já bastantes anos, fiquei surpreendido com uma primeira experiência na minha cantina, de um molho a café a saber fortemente a café. A lógica era que um molho à café tinha de levar café. E abonavam-se na receita que seguiam, num guia para cantinas do mestre Silva (na altura eram mestres, como João Ribeiro, hoje é que são chefes, mesmo que sejam ajudantes de cozinha a descascar batatas). Vejam Oleboma ou Maria de Lourdes Modesto, que não falam nada de café. No entanto, um bom divulgador, como Alfredo Saramago, também foi nessa do café.

Outro caso, que está na origem desta nota porque foi meu almoço há dias, é o das costeletas de porco à salsicheiro. Novamente a confusão entre “à” e “com”. Não é óbvio que à salsicheiro quer dizer com salsichas? É como se o bife à cortador tivesse de vir com um corta-unhas. No caso do salsicheiro, até tem importância gastronómica porque não me parece que as salsichas adiantem alguma coisa ao sabor da carne de porco.

Tanto quanto investiguei, as costeletas à salsicheiro não são muito antigas nem fazem parte das listagens mais respeitadas, de Carlos Bento da Maia, Oleboma ou Maria de Lourdes Modesto. O molho, habitualmente, é um tipo de levantamento com vinho branco dos sucos de fritar, com rodelas de salsicha em lata.

É provável que seja uma adaptação do molho francês “charcutière”, mas que é diferente. Aqui fica a receita, tal como a tenho publicada por Alain Ducasse.

50 g de cebola, 10 cl de vinho branco, 8 cl de “jus” (na falta, caldo) de vitela, 10 g de mostarda, 20 g de manteiga, 50 g de cornichões, sal, pimenta preta de moinho

Descascar e picar fino a cebola. Cortar os cornichos em rodelas finas ou juliana. Se forem muito ácidos, branquear previamente.

Alourar a cebola na gordura de fritar as costeletas e deslacrar com o vinho branco, aquecendo até secar. Juntar o caldo e cozer durante alguns minutos a lume médio-baixo.

Retirar do lume e incorporar a mostarda. Coar, juntar os cornichos e bater com a manteiga. Temperar.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s