Relendo a legislação do ensino superior

Ao fim de alguns anos de vigência das leis, principalmente das que configuram sistemas, é bom revisitá-las, aferindo-as com a experiência prática. Vou fazê-lo em relação a dois aspetos cruciais da nossa educação superior, o regime jurídico e o processo de Bolonha. Tenho razões pessoais, porque fui “traído”, isto é a prática viciou os princípios que defendi, e que estão traduzidos em muitos artigos meus.

Começo pelo regime jurídico das instituições de ensino superior, o RJIES. 

Fui crítico do velho sistema de “gestão democrática das universidades”, estabelecido depois do 25 de abril e sob pressão de muito esquerdismo estudantil. A escolha dos dirigentes era eleitoralista e não havia lugar para programas, espírito de missão, inovação e qualidade. Entretanto, o longo consulado Mariano Gago na ciência e no ensino superior conduziu a mudanças, no regime jurídico (RJIES, lei 62/2007 de 10 de setembro), nas carreiras, na estrutura de graus, que em muito foram – ou contribuíram – no sentido oposto.

Confesso que advoguei muita coisa dessa reforma, em princípio, mas também alertei para aspetos concretos que prenunciavam vícios, como a prática demonstrou. Também a reforma Mariano Gago teve como pano de fundo uma visão de 4 E, como bem discutido por António Sampaio da Nóvoa: empregabilidade, excelência, empresarialização, empreendedorismo. Bonitas intenções, mas eufemismo e objetivos discutíveis. Dispenso-me da discussão. Escrevi muito no meu sítio e o artigo de Nóvoa é eloquente.

Coincidiu também, contraditoriamente, com o processo de Bolonha. Do lado universitário, o processo foi uma campanha pela nova pedagogia, pela maior valorização da aprendizagem ativa em lugar da lição magistral, pela importância da aquisição de competências transversais.

Simplesmente, isto que podia ser a base da atualização da conceção newmaniana da educação liberal foi dominado pelo tal espíritos dos 4 E, utilitarista, orientado pelo mercado e pela economia, desvalorizadora da formação humana e do cidadão.

O sistema binário

Desde ainda antes do 25 de abril, com a reforma Veiga Simão, tinha-se distinguido entre dois tipos de ensino superior (prefiro a expressão educação superior), o universitário, tradicional, e o politécnico, com vocação profissionalizante e mais descentralizado geograficamente.

A situação previsível não foi tida em conta no RJIES e tem-se agravado: a deriva académica e a deriva profissionalizante. Deriva académica por parte dos politécnicos, desejosos de um estatuto de carreira e de prestígio semelhante ao das universidades, levando à criação d escuros de índole científica, sem condições, e à pretensão de conferir doutoramentos. Diva profissionalizante por parte da universidade com cv+criação de cursos “úteis” como um célebre mestrado em gestão de campos de golf.

A situação podia ter sido, como em Espanha, a da fusão de universidades e politécnicos, embora mantendo-se estes como escolas superiores profissionalizantes, com especificidade institucional. Por razões históricas, esta situação existe excepcionalmente no Minho, em Aveiro e nos Açores e, ao que me consta, tem funcionado muito bem.

Público e privado

Logo como princípio, não se fez ou não se quis fazer, por essa altura, a grande reflexão sobre o valor estratégico, qualidade e situação real do ensino privado. Mas é assunto que fica para outro artigo, bem como coisa relacionada, a complacência com o ensino privado por parte da Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior (A3ES).

O RJIES teve a pretensão de abranger de forma “harmónica” situações tão distintas como o ensino superior público e privado. O primeiro rege-se pela lógica do bem comum, responde perante os contribuintes, tem de antender aos desequilíbrios entre contingentes de qualificados e realidades geográficas, tem de promover a qualidade geral e em todas as áreas do saber mesmo contra fatores economistas. O segundo é meramente empresarial e não se lhe pode pedir mais.

Isto é patente na lei em tudo o que respeita à organização e gestão dos estabelecimentos. Pode dizer-se que é natural que a tutela pelo Estado, no caso da universidade pública, tem como paralelo o poder total da entidade privada tutelar do estabelecimento de ensino.

Na prática, não é assim, porque a autonomia universitária limita muito a intervenção do governo. Todos os órgãos são constituídos sem interferência governamental e a margem de liberdade de gestão, financeira e de pessoal, é muito grande. Nada disto se passa nas privadas, em que até o reitor é nomeado pela administração da entidade proprietária. Como pequeno exemplo simbólico, até há pelo menos uma privada em que os doutoramentos honoris causa (sempre políticos) são entregues solenemente pelo administrador, com o reitor em segunda posição.

O RJIES e a lei dos graus são taxativas na definição de requisitos mínimos de qualidade docente, em termos de percentagens de professores doutorados e de professores a tempo inteiro. A sua extensão às privadas é uma fraude, com escandalosas manipulações do “estatuto” dos docentes. O mesmo quanto a instalações, ensino laboratorial, bibliotecas, acompanhamento dos alunos, gabinetes de trabalho e estudo dos professores, etc.

Num momento em que o sistema público já quase satisfaz a procura, não é d exigir um grande aperto na avaliação e acreditarão das privadas (salvo honrosas exceções, é claro).

Fundações

Uma das inovações do RJIES, segundo uma moda burocrática de então, mas que foi mal conseguida alhures, foi a criação de universidades-fundação, regidas pelo direito privado. O argumento, recorrente de há muitos anos, era o da agilização da gestão e a facilitação da empresarialização da universidade. Falso argumento, porque aquilo em que as regras da administração pública e a fiscalização pelo Tribunal de Contas tolhem um gestor – e falo por experiência própria – são, em geral, condições naturais num sistema de transparência, responsabilidade e prestação de contas aos contribuintes. Mesmo assim, quantas mordomias abusivas se consentem e quantos atropelos ao Código de Procedimento Administrativo.

Na prática, a única consequência da passagem a fundação tem sido a que era de esperar como mais perigosa: a gestão de pessoal, recrutamento e carreiras, pela lei privada do trabalho, com bem conhecidas situações de injustiça, arbitrariedade e precariedade. Mas também, quando o Estado não dota suficientemente de recursos as universidades-fundação, que no fundo são suas, não admira que os reitores vão ratar no que o seu estatuto mais lhes põe à mão, a gestão do pessoal.

Os poderes

É este provavelmente o tópico mais discutível da reforma. A gestão universitária anterior era ineficaz, com muito ruído d assembleia, prestando-se a compromissos eleitoralistas e dificultando uma ação estratégica. O RJIES veio permitir o extremo oposto. Nunca reitores e diretores tiveram tanto poder, muitas vezes exercido autoritariamente e sem critérios, e nunca a comunidade académica foi tão pouco ouvida.

Mas logo de início a lei tinha uma enorme limitação, muito comum entre nós, a da excessiva regulamentação. Pretendendo estabelecer o quadro da autonomia, espartilhou-o burocraticamente. Basta ver como, em consequência, os estatutos das universidades em pouco diferem. Não há contemplação pela especificidade, não se usa a autonomia como estímulo e prémio à qualidade e à inovação.

Como escrevi na época, “a autonomia é também um factor importante da diversidade, que é um elemento enriquecedor de qualquer sistema organizacional. A diversidade é particularmente relevante no caso do ensino superior, face à grande complexidade dos desafios que se lhe colocam e à multiplicidade de solicitações que lhe são postas, a começar pela heterogeneidade crescente da população que a procura. A diversidade aumenta o leque de escolhas, ajusta-se à evolução rápida das exigências do mercado do trabalho, cria condições para experiências inovadoras e estimula a procura de padrões de excelência próprios de cada universidade. Não há duas situações iguais nas universidades. Variam na composição do seu corpo docente, variam na sua cultura institucional histórica, variam na sua vocação, mais nacional ou mais regional, variam conforme o peso relativo dos interesses mais académicos e científicos ou da vocação mais tecnológica e imediatamente profissionalizante. A autonomia, permitindo às universidades organizarem-se da melhor forma para corresponderem a esses diferentes condicionalismos, é a forma de respeitar essa diversidade.”.

Uma das principais inovações foi a criação dos conselhos gerais e seus equivalentes nas unidades orgânicas (faculdades e outras escolas ou institutos). Têm dimensão limitada (15 a 35 pessoas no máximo), são responsáveis por diversas facetas da estratégia da universidade, em termos gerais, aprovam os estatutos e elegem o reitor, por processo internacional de candidatura e seleção. São constituídos por personalidades externas à universidade ou escola, de entre os quais é eleito o presidente, e por membros eleitos de entre os professores, estudantes e, eventualmente, funcionários.

Creio que, de uma forma geral, têm funcionado bem mas de forma muito limitada. A experiência europeia de conselhos deste tipo é variada e depende muito de circunstâncias históricas locais. Onde ela é mais importante é no que respeita aos poderosos “boards” americanos, situação muito diferente principalmente nas grandes universidades fundacionais. 

São compostos só por membros externos, sempre designados por método cooptativo, e profundamente empenhados, com mentalidade herdada dos pioneiros, no progresso e financiamento da universidade. Os seus membros têm alto prestígio social e intelectual e são muitas vezes antigos alunos (alumni) eles próprios grandes mecenas da universidade. O seu controlo sobre a gestão da universidade é estreito, coisa que não me parece existir na nossa versão de conselhos gerais.

A coberto de uma pretensa fiscalização pelos conselhos gerais, os reitores (e os directores de unidades orgânicas) foram dotados de poderes exorbitantes, tanto mais que foram abolidos os senados – o que critiquei na época –, tradicionalmente os órgãos em que a comunidade académica podia estabelecer pesos e contrapesos com o reitor.

A universidade tem uma cultura milenar que não pode ser varrida para debaixo do tapete. Também escrevi no meu livro “A Universidade no seu Labirinto”:

“A universidade é feita de muitos poderes fragmentados e dispersos. Isto é inevitável, porque radica na própria natureza da universidade. Em relação às suas duas actividades principais, o ensino e a investigação, o poder está em grande parte e obrigatoriamente na base. O professor que ensina e o professor que investiga são senhores de grande capacidade autónoma na determinação do conteúdo e do formato destas actividades, em relação às quais não recebem ordens de ninguém. Nem de outro modo pode ser, porque são actividades intelectuais criativas que não se determinam do exterior. A universidade é, portanto, uma comunidade de pessoas que gozam de grande grau de liberdade, embora esta liberdade se devesse subordinar ao objectivo comum de coerência política e de garantia da qualidade da instituição. Na universidade, a qualidade depende muito dos esforços e das iniciativas individuais e dificilmente pode ser imposta unilateralmente, como ordem superior não assimilada pelos universitários e mesmo que a unanimidade e o consenso não sejam sempre possíveis, a decisão, como norma geral, precisa de ser suportada por um largo apoio de base.

Os professores são também influentes, formadores de opinião e muitas vezes pólos de interesses e poderes fácticos, por vezes até exteriores à universidade (poderes políticos, influência em movimentos sociais, poderes profissionais). Estes poderes e influências são trazidos para dentro da universidade e também são muito difíceis, se não impossíveis, de controlar. Nesta teia complicada de poderes e influências, é fácil tecerem-se redes interpessoais com elaboração de estratégias individuais e de grupo. Isto é frequente nas escolas mais pequenas, menos aptas à diluição das estratégias de grupo, com o seu pessoal académico frequentemente dividido em grupos de influência por vezes marcados por fortes cargas de antagonismos e em que as decisões, designadamente no conselho científico, podem não ser tomadas objectivamente pelo seu valor científico mas sim em virtude da relação de forças entre os grupos, com forte carga de subjectividade.”.

Também escrevi, nesse livro:

“A questão da liderança temperada com uma participação com conteúdo real é hoje central na organização e funcionamento das instituições modernas, sejam empresas, sejam organismos públicos. Os organismos complexos têm que ser conduzidos com uma estratégia clara, dificilmente emergente dos mecanismos de discussão muito alargada e exigindo normalmente a condução por uma personalidade forte, determinada e com visão estratégica. O problema, entre nós, é provavelmente encontrar essas personalidades, porque a nossa cultura, as aptidões facultadas (ou não, neste caso) pelo nosso sistema educacional e os valores societais não ajudam à emergência de líderes. Que até, quando aparecem, são incómodos, porque sacodem o conforto das ideias estabelecidas e fazem realçar a mediocridade, por contraste; são vistos com desconfiança e são frequentemente antagonizados. Por isto, como eu sei, as experiências de reforma podem ser interrompidas prematuramente, a bem da “normalidade” universitária.

A liderança não é sinónimo de concentração de poderes e centralização. Ela é o motor praticamente indispensável da proposta de concepção da política central e da sua tradução operacional, mas também é indispensável que essa acção política e de direcção seja sentida e assimilada pelos executantes. Isto passa por eles se sentirem também envolvidos na definição da política, sentirem que, nas suas funções de executante, estão a reflectir alguma coisa de que participaram e que lhes é própria e próxima. “

Nada disto se teve em conta. Talvez não fosse de esperar, sabido que Mariano Gago era muito mais um investigador do que um professor, no que é seguido, ao que me parece, pelo atual ministro.

Nas faculdades, manteve-se ao menos o conselho científico, composto por professores e investigadores, mas com abertura ao predomínio da decisão do diretor, mesmo em assuntos de índole científica, muitas vezes em matérias em que o diretor não é especialista.

Dou como exemplo um caso de atribuições ao diretor de poderes científicos para além das competências do conselho científico: aprovar a criação, transformação e extinção, bem como homologar os respetivos regulamentos, dos Centros de Investigação; designar júris de provas académicas de mestrado e de doutoramento, sob proposta do Conselho Científico; homologar a distribuição do serviço docente bem como o mapa de distribuição de responsabilidades das unidades curriculares; criar, suspender ou extinguir cursos não conducentes à obtenção de grau.

E, principalmente, o enorme poder de decidir quando e como (até com retrato no edital) abrir concursos de carreira docente. Sem controlo, este poder abre a porta a todos os vícios e perversidades.

Não haveria mal se vivêssemos num mundo de anjos. O problema é que, parece que cada vez mais, o poder atrai como afrodisíaco pessoas narcísicas, autoritárias, associais (para não lhes atribuir o nome hoje cientificamente correto). Campeiam as arbitrariedades, o nepotismo, o favoritismo, o prémio aos cortesãos, as perseguições aos que se tentam opor, até mesmo a corrupção.

Finalmente, uma nota triste. Tal como na política, assiste-se na educação superior a uma cada vez mais evidente banalização intelectual dos dirigentes, reitores e diretores de faculdade. Gente mediana já pouco pode fazer de meritório. Mas podem fazer muito mal com o RJIES atual.

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