Num dos seus últimos escritos, que agora não consigo localizar, Norberto Bobbio dizia entender que um povo não é enganado contra a sua “essência”. Por exemplo, dizia, houve fatores económicos e sociais para a ascensão do nazismo, mas fundamentalmente um “pathos” histórico de nacionalismo, sentido da supremacia nacional, belicismo.
Perguntava-se então, dolorosamente, no apogeu do berlusconnismo, se os italianos não eram, “por natureza”, conservadores, adeptos do autoritarismo, tal como tinham apoiado maioritariamente o fascismo. Claro que, no seu desgosto, estava a esquecer a resistência gloriosa.
Pessoalmente, não acredito em psicologia dos povos a não ser como metáfora. psicologia, por definição, é individual, mas evidentemente moldada também por fatores sociais, desde logo familiares. Há é um fundo cultural e educacional secular, muito marcante, que nos faz em muito como entidade humana e social. Mas chamar-lhe a “psicologia portuguesa” deve ficar por aí, sem se pensar em psicanálises, choques psicológicos ou coisas que tais, à Eduardo Lourenço ou José Gil. E sempre considerando, à Ortega y Gasset (que nem é um meu filósofo predileto), que um povo também é um povo e as suas circunstâncias. O povo português de 25-26 de abril ou 1 de maio de 1974 e o povo português de hoje estão em circunstâncias muito distantes.
Sou um observador muito curioso e autotreinado do pequeno mundo, do quotidiano, do que se passa à minha volta. Estou sempre a ver “chacun passe, chacun vient, chacun va; Drôles de gens que ces gens-là!” (Carmen) e não gosto do que vejo.
Acima de tudo, os maiores sinais de atraso, a incivilidade e o irracionalismo. Em tudo, desde o trânsito à tomada de duas filas por cada membro do casal, à sogra que fica a guardar a mesa da zona de refeições do centro comercial, ao truque permanente para se safar qualquer coisa, ao pedido de cunha que um médico recebe a toda a hora, à publiciudade enganosa que ofende o mínimo de inteligência, a todo o constante “épater le bourgeois”, ao título que se invoca, ao deslumbramento ridículo com o alto estilo de vida por parte dos novos-ricos.
Também a condescendência com o facilitismo, o amiguismo. A onda de protesto contra as relações familiares na política esconde o facto de que quase toda a gente faz o mesmo, na sua esfera de influência. O clubismo, em todas as suas versões, políticas e sociais, que cega apaixonadamente. E tanta coisa mais que caracteriza um padrão – claro que esquemático, mas instrutivo – do ser português.
Antero continua a ser de leitura obrigatória nas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Neste caso, predominam na sua visão “as suas circunstâncias” sobre o “eu”. Mas o “eu” acaba por ir absorvendo “as suas circunstâncias”. Para Antero, há três causas ainda não ultrapassadas. 1) a reacção religiosa, conhecida como Contra-Reforma, consumada no Concílio de Trento e dirigida pelos jesuítas; 2) a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais, e 3) o sistema económico criado pelos descobrimentos, de rapina guerreira, que tinha impedido o desenvolvimento de uma pequena burguesia.
Um exemplo de síntese, que não cabe aqui discutir, é o tão consagrado (pela I República) pombalismo. Teve isso tudo, e em versão perversa, a valer mais do que a positiva reforma da universidade. Religião fundida com o estado, expulsando a sua vertente mais progressista, a jesuita; absolutismo, mas ao serviço pessoal e de uma nova aristocracia; exploração não desenvolvimentista do império, principalmente na América do Sul.
Quanto ainda não vemos hoje de consequências disto na nossa vida social, económica, política e cultural?
Olhemos também para Eça. Não há quem não diga “Eça, sempre atual”. De facto, Abranhos e Zagalos (indissociáveis), Gouvarinhos, Palmas Cavalão, Dâmasos Salcedes, Acácios, etc., não os vemos todos os dias? Mas também a nossa elite “moderna”, dos jovens quadros das multinacionais com cartão de crédito para restaurantes estrelados e que muitas vezes nem a restaurante banal foram na infância, a gente mediática alçada a escritores de grande venda, as tias de Cascais. É muito diferente, no essencial, da superficialidade ou mediocridade, por engraçada que seja, de um João da Ega ou de um Ramires? Mesmo Carlos da Maia ou Fradique já são os mortos esquecidos de algum nível intelectual, mas diletante e de decadência classista, se vistos hoje.
Estou a ofender os portugueses? Como, se eu sou português? Quero é ser lúcido e tentar diagnosticar corretamente antes de me empenhar num tratamento que também é para mim.
É doloroso dizê-lo, mas temos uma enorme carga negativa histórica na nossa cultura, mentalidade dominante e normalizadora, com reflexos na maneira de viver. Qualquer política tem de ter isto no plano da frente. Fomos, como povo (ou melhor, como sua elite) capazes de coisas sublimes. Mas, no constante da história, temos muito contra a facilidade de um projeto de história transformador.
Há muita coisa a superar: a irracionalidade, a credulidade acrítica, a falta de rigor, a sujeição passiva à autoridade, a incivilidade, o desrespeito pela ética coletiva, a falta de solidariedade e de espírito comunitário, o “salve-se-quem-puder”, o desprezo pela cultura (até pela cultura popular), o nepotismo e o amiguismo, o novo-riquismo, a inveja em múltiplas formas e expressões, a tendência para o oportunismo, etc., etc.,
Um projeto transformador, de esquerda consequente, obedece a leis gerais (tendenciais, não no sentido das leis das ciências exatas). Tem como pano de fundo a análise de situações históricas gerais, económicas e sociais. Neste sentido, aponta para uma luta internacionalista (o que é o contrário de globalista no sentido neoliberal ou eurofanático).
Mas também deve partir de uma situação concreta, de cada objeto de transformação, e, ainda hoje, esse objeto tem a dimensão que mais instintivamente valorizamos, a da nossa comunidade como povo. Por tudo o que disse, forçosamente de forma um pouco esquemática, a luta é política, económica e social. Mas, talvez em primeiro lugar, cultural.
Humildemente, reconheço que não estou a inventar nada. Só a aplicar e desenvolver o que escreveu um meu grande mestre, Antonio Gramsci. É indispensável lê-lo.