A ciência dos partidos

O científico e técnico não podem sobrepor-se ao político, mas, em tempos atuais de alta tecnicidade dos problemas, o político não dispensa uma sólida base técnics e científica. Lapalissada. Além disto, essa complexidade da análise e decisão política exige uma grande capacidade analítica, de mente crítica, de domínio da racionalidade científica que só se adquire pela familiarização com o pensamento científico e com o exercício de controlo do enviesamento intelectual pela exacerbação ideológica e pela paixão política.

Tradicionalmente, a política centrada predominantemente no domínio económico e social recorria principalmente ao suporte da economia. Hoje, com a propensão para a ação legislativa em temas societais ou em áreas muito diversificadas de “novos interesses”, mexe-se com a medicina, com a pedagogia, com a família, com o ambiente, com a saúde pública, com a cultura a identidade comunitária, um sem fim de coisas.

Duvido de que os parlamentos e os partidos estejam preparados para estes novos desafios e os exemplos falam por si. O que muitas vezes interessa é agitar bandeiras, satisfazer até pequenas clientelas internas dos partidos, obter ganhos eleitoralistas.

Normalmente, a direita e o PS estão mais habilitados a disporem de base técnica, por dominarem o aparelho de estado e os seus organismos técnicos. À esquerda, no caso do PCP, isto é compensado pela militância de quadros técnicos e seus organismos partidários, estudiosos e geralmente competentes. Pelo que vou vendo, duvido de que seja o caso do BE.

No entanto, o BE, nos seus projetos de lei polémicos, usa sempre argumentos de ordem científica ou técnica. Não o faz é com acerto, antes sempre numa perspetiva instrumentalizadora.

Já escrevi sobre o caso das medicinas alternativas, entre nós ditas eufemisticamente terapias não convencionais, para não hostilizar a ordem dos Médicos. Por proposta do BE (consta que, na época, sob influência do mandarim nesta matéria Pedro Choy) mas com voto favorável, logo corresponsabilidade, de todos os partidos, tem-se assistido a uma série de medidas de legitimação dessas práticas fraudulentas que, pelo contrário, por exemplo em Espanha, estão a ser reprimidas em outras partes, para defesa da saúde pública e dos direitos dos consumidores.

Foi a lei geral que legitima essas pseudomedicinas, a pretexto de as regular. Depois, as provisões avulsas, fantasia após fantasia, de definição (delirante!) e das suas condições de prática. A seguir, a previsão de ensino superior nessas áreas e a decisão da A3ES (agência de acreditação do ensino superior) de autorizar licenciaturas em medicinas alternativas. E a complacência (também da ordem dos Médicos) com a autorização de estabelecimentos como um meu vizinho Centro de Medicina Holística, com “tratamentos” de psicoterapia das vidas passadas, de psicologia quântica, sei lá que mais.

Não vou repetir argumentos básicos já cansados que mostram que essas “medicinas” nunca tiveram demonstração cabal de eficácia, que são placebo (acupuntura), que são aberração científica (homeopatia), que vão contra toda a evidência médica (osteopatia, quiroprática) ou que, podendo ser eficazes, são inferiores á farmacologia moderna e podem ser perigosas (naturopatia).

O que me interessa agora, nesta nota, é lembrar que a fundamentação “científica” das iniciativas políticas é muitas vezes falaciosa. Neste caso, invocou-se principalmente a autoridade da OMS. Foi argumento martelado. Por um lado, a OMS é uma organização política, embora, evidentemente, com sólido aparelho técnico. Neste caso, a sua isenção científica fica comprometida, em resoluções políticas, como a das medicinas tradicionais, por fatores políticos como, no caso, a grande pressão da China. Por outro lado, a muito falada resolução refere-se apenas a medicinas tradicionais (o que não é obviamente o caso da homeopatia, do reiki e de toda uma série de fraudes anticientíficas) e apenas na medida em que o mundo carenciado deve tirar partido do que possa ser sabedoria curativa tradicional enquanto não dispuser dos recursos da medicina moderna do mundo desenvolvido.

Outras vezes, a preocupação manifestada é a da menorização dos prejuízos, como no caso da legalização do consumo de canábis. Tenho algumas dúvidas, mas admito que possa incorrer em processo de intenções. Estou convencido de que por detrás de piedosas intenções está pura e simplesmente o facto de que muitos políticos de gerações mais jovens do que a minha são consumidores. Tout court. Ou que, numa perspetiva hedonista, contestatária e contracultura, tão própria de intelectuais à la page, sentem prazer em se opor a juízos estabelecidos que só podem ser vencidos por persuasão paciente, não por provocações roturantes. Porque se fala, mesmo em documentos político-partidários, em “cultura canábica”?

Tenho vindo a estudar o assunto. Cada vez tenho mais dados a mostrar-me que é um problema de saúde pública, com consumo generalizado, contrafações, produtos perigosos, necessidade de apoio aos que, mesmo não muito numerosos, ficam em dependência ou têm consequências psicóticas. Admito sem reservas que um estudo criterioso e a análise de experiências em curso de legalização venham a justificar a legalização regulada. Pessoalmente, não tenho opinião formada, por falta de dados e não quero ir por preconceitos. Posso bem vir a apoiar uma lei de regulamentação legal do uso da canábis. Mas não vejo justificação para a precipitação do BE. Ou melhor, vejo.

É uma via tortuosa. Começou-se pela legalização da canábis para fins medicinais, mas como se não fosse facto que nenhuma lei era necessária por não haver qualquer obstáculo legal à autorização pelo Infarmed (que até já existe) para a venda de medicamentos à base de canabinóides. O que de facto se queria era o autocultivo, obviamente reorientável para o consumo recreativo. A hipocrisia foi retribuida, porque outros partidos rejeitaram o autocultivo mas mantendo o resto da lei, coisa inócua e sem sentido prático. Com coisas destas, o parlamento desprestigia-se.

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