Coisa que li hoje alertou-me mais uma vez para o risco que se corre ao menosprezar-se a linguagem (não propriamente a mensagem, mas mais a sua forma) como instrumento político:
“Uma série de escritores, influenciadores e opinadores da nossa época, que apresentando-se como supostos combatentes contra o politicamente correto e a justiça social, mercadejam ódios e polarização. Trata-se de um antepassado da extrema-direita atual.”, escreve um opinador tido como de esquerda – outra coisa a esclarecer, o tido e o sido.
Volto assim ao “politicamente correto”. É necessária alguma história, mesmo que imprecisa. A partir dos anos 80, começa a ser dada grande importância política ao não uso de expressões tidas como ofensivas, excluintes ou mesmo claramente racistas, machistas ou homófobas. Não mais negro, antes afroamericano ou, mais generalizadamente, afrodescendente, é exemplo bem vulgar. Chega-se a nem se poder usar a palavra negativamente. É proibido dizer “é proibido dizer ‘nigger’”, mas sim “!é proibido dizer a ’n-word’”. Não pronunciar o nome de deus.
O cuidado com a linguagem chegou a tal exagero, quase que à sobrevalorização do símbolo sobre a substância na luta política, que, com algum sentido pejorativo, se foi alargando o uso da designação “politicamente correto” para essa linha de conduta, cada vez mais obsessiva nos grupos progressistas da academia americana. Depois também nas organizações políticas que, na Europa, atraem camadas intelectuais radicais contestatárias, contracultura e transversalistas.
É certo que os conservadores americanos adotaram a expressão com outro objetivo. Numa primeira fase, e pelo tempo fora, ela foi usada principalmente pelos críticos de esquerda racionalista e com maior pendor classista, nomeadamente a esquerda marxista não ortodoxa. É neste sentido, de denúncia de atitudes que são tiro nos pés e descredibilizantes, que costumo usar a expressão “politicamente correto” para coisas como “camaradas e camarados”, a recusa do falso masculino plural como abrangendo ambos os géneros (“os portugueses”), “as pessoas portadoras de deficiência” em vez de “os deficientes”, etc., etc. Tartufo, séculos depois.
O que os conservadores fizeram foi começar a usar a expressão para designação dos próprios campos de ação em que se inserem as tais preocupações linguísticas. Deixa de se aplicar a designação “politicamente correto” à linguagem não discriminatória excessiva e formalista para se aplicar a toda a luta contra a discriminação, contaminando a perceção geral das lutas essenciais com os seus acrescentos caricaturais e, até certo ponto, perversores dessa essencialidade.
Assim, não se estranha que, como na citação que fiz acima, sejam agora os anteriores alvos da crítica de esquerda ao “politicamente correto” de fachada que passem a usar a expressão com a mesma conotação abrangente que lhe dão os conservadores. Assim, o que for contra o “politicamente correto” passa a ser o caminho para o fascismo! A par do que for contra a justiça social. Mas que “politicamente correto”, para o tal opinador? Certamente que não, por exemplo, a obrigatoriedade do “todos e todas”, ou tod@s ou todxs, afinal o que eu e muitos chamamos, com conotação cómica, de “politicamente correto”. Mais certo é que, dando-lhe a importância de objetivo destrutivo pelo fascismo, estejam a designar assim a luta feminista, neste caso. Acho muito mais correto – aqui sim, o termo – falar de feminismo como luta política e social, objetivo ideológico e cultural, política progressista, realmente democrática, tudo o que se quiser e que está muito para além da linguagem.
No entanto, estando a ver-se cada vez mais toda esta confusão linguística (também muito visível na denominação de populismo para tudo e o mais), não vou contribuir para o jogo de uns e outros. Fiquem os “esquerdistas” e os seus opositores conservadores com a sua gramática. Tenho pena de deixar de criticar o P. C., politicamente correto, como infantilidade política e ideológica. Mas afinal, vendo bem, posso continuar a falar de P. C.: politicamente caricato.