Já referi repetidamente, desde o meu livro “O Gosto de Bem Comer”, que a cozinha açoriana se caracteriza de forma muito marcante pelo uso rico de especiarias. A par da ubíquota malagueta, dita pimenta da terra ou simplesmente pimenta (a outra é a pimenta do reino) usa-se quase obrigatoriamente a pimenta preta, o cravinho ou, principalmente na Terceira, a pimenta da Jamaica e a canela.
Em S. Miguel, é muito usada a mistura de “todos os temperos”. Vendia-se nos armazéns de víveres e nas mercearias de “fora da cidade” (expressão açoriana para o campo) e até servia de troco. É composta por pimenta preta, colorau, cravinho, erva-doce, cominhos e canela.
É lógico que o uso das especiarias se relacione com o facto de as naus da Índia, no regresso e carregadas, tivessem de passar pelos Açores, principalmente pela Terceira, a tomar a latitude de Lisboa, na chamada volta do largo. É certo que os capitães estavam obrigados a garantir a inviolabilidade da carga, mas não repugna que procedessem em contrário, talvez como forma de pagamento da aguada e do abastecimento de frescos.
No entanto, pensando no caso dos temperos de S. Miguel, ocorreu-me há dias uma outra possibilidade, não excluindo essa da volta do largo. Ao fazer um cuscuz berbere, usei necessariamente a minha versão de ras-el-hanout, “o melhor da cozinha” em árabe, e coisa que cozinheiro que preze faz a seu gosto, sobre uma base comum.
Uso uma mistura de cominhos, gengibre, erva-doce, pimenta preta, canela, colorau, pimento picante, sementes de coentro e pimenta da Jamaica. Não deixa de evocar os mais simples “todos os temperos” micaelenses. Note-se também que os próprios cuscuz são muito vulgares na cozinha de S. Maria. Ora esta ilha, bem como S. Miguel, foram muitas vezes atacadas por corsários berberes, raptando ilhéus que, depois de algum tempo, regressavam por vezes aos Açores, com costumes que entretanto tinham adquirido. É coisa documentada.
Também não me parece de excluir que, em alguns casos, o contacto dos corsários com as gentes das ilhas fosse mais pacífico, para abastecimento. Adquirir alimentos e água podia não justificar o processo mais custoso de ataque violento. Nesse caso, e como em S. Miguel rural dos meus tempos, os temperos berberes, preciosos, podiam servir de moeda.
Não tenho a certeza de nada disto, mas “se non è vero, è ben trovato”.